Morou com ciganos, amou as prostitutas: como freira virou 'irmã' do papa
Geneviève Jeanningros sempre acreditou que sua missão era estar ao lado de quem a Igreja preferia esquecer. Nômades, artistas de circo, pessoas trans, prostitutas e casais considerados impróprios pela doutrina oficial. Tanto é que quis morar entre eles. Até o ano passado, sua casa era um trailer em um acampamento cigano que fica na praia de Ostia, uma das mais próximas de Roma.
Aos 81 anos, a freira francesa da fraternidade Irmãzinhas de Jesus, se tornou uma das figuras mais marcantes no velório do papa Francisco —a quem chamava de amigo. Com uma mochila verde nas costas, ela quebrou o protocolo e se aproximou do caixão do pontífice, onde chorou e rezou sem ser interrompida. Para muitos, o momento de Geneviève revelou também a essência de Francisco: humanidade, compaixão e desvio das regras quando o amor exige.
Geneviève, assim como o pontífice argentino, carrega sempre o sorriso no rosto. Gentil, humilde e amiga dos últimos, os preferidos de Cristo. O papa carinhosamente a chamava de "enfant terrible" (criança terrível, em tradução livre do francês), por sua vocação fora dos padrões. Há 56 anos, ela dedica a vida à assistência de pessoas trans, prostitutas do Lido di Ostia e artistas circenses, mundos que ela apresentou a Jorge Bergoglio ainda antes do pontificado.
A história da freira com Francisco começou décadas atrás, e a Argentina foi o elo inicial. Geneviève é sobrinha de Léonie Duquet, uma das freiras francesas sequestradas e mortas durante a ditadura militar no país. A tia da francesa desapareceu após ser presa em 10 de dezembro de 1977. Foi levada a ESMA, um centro de detenção clandestina, e nunca mais voltou.
"Essa Igreja não é a minha"
Geneviève relembrou, em vídeo gravado em francês e encaminhado à reportagem do UOL, o impacto do passado argentino em sua vida e a importância do encontro com Francisco. "Visitei a ESMA, onde ela [a tia] foi presa. No dia do enterro, na Igreja Santa Cruz, a igreja estava lotada, mas não havia nenhum representante da diocese. Havia apenas alguns padres próximos dos pobres, as Mães da Praça de Maio. Chorei do início ao fim da missa. Depois, no avião de volta, chorei muito também. O que mais me doía era que parte da Igreja estava com a ditadura. E eu pensava: 'essa Igreja aí não é a minha'."
Ela decidiu escrever ao então cardeal Bergoglio e, para sua surpresa, recebeu uma ligação em resposta. "Ele me disse: 'Obrigado, minha irmã, por me enviar essa carta.' E acrescentou que não era alheio àquela situação. Eu disse que isso não bastava. Faltou presença. Ele ficou em silêncio e respondeu: 'Obrigado, minha irmã. É assim que fazemos entre irmãos e irmãs.'"
O medo da eleição e a reconciliação
Quando Francisco foi eleito papa, em 2013, Geneviève estava na Praça São Pedro. Ela conta que quando ouviu o nome do argentino, levou as mãos à cabeça e pensou: "Meu Deus, o que vai acontecer agora?". Disse que sentiu medo.
Mas um mês depois, em um encontro, Francisco a abraçou, e ela sentiu que algo se resolvia: "Desde que ele foi eleito, eu escutava tudo que saía sobre ele. Ouvi um discurso em que ele dizia o quanto gostaria de uma Igreja pobre com os pobres. Chorei muito, porque pensei: minha tia morreu por isso."
Quartas-feiras no Vaticano e a visita surpresa
Por anos, Geneviève levou grupos de pessoas trans, prostitutas e artistas de circo para as audiências gerais do papa. Mas o momento mais marcante foi quando Francisco decidiu visitá-la em casa, sem aviso prévio.
Meia hora depois de eu escrever para ele, Gianni, da gendarmaria, me ligou: 'O papa quer visitá-los.' Meus amigos decoraram tudo, limparam, penduraram bandeiras. Quando ele chegou, foi como se aquele lugar, cheio de pessoas que a sociedade rejeita, fosse finalmente abençoado.
Geneviève Jeanningros
Em 31 de julho de 2024, Geneviève organizou a última visita do papa ao parque de diversões de Ostia. No local, ele abençoou uma estátua da "Virgem protetora do espetáculo viandante e do circo".
"Ele era meu irmão"
Ao fim do depoimento, Geneviève lembrou o momento de oração no velório do pontífice. Ela olhou para o chão, sorriu e disse: "Não era o papa para mim. Era Francisco, meu irmão. E irmãos não seguem protocolos, seguem o coração."