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Ela perdeu o pai entre as provas do Enem, teve câncer e passou em medicina

Mariana Costa, 36, recém-aprovada em medicina - Arquivo pessoal
Mariana Costa, 36, recém-aprovada em medicina Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Do UOL, em São Paulo

25/04/2025 05h30

Mariana Costa, 36, decidiu retomar um sonho adormecido havia 15 anos: cursar medicina. Formada em farmácia e trabalhando em laboratório, ela entendeu que seu lugar era no consultório, lidando com os pacientes.

Foram quatro anos de cursinho até conseguir a aprovação em uma universidade pública, a UFCA (Universidade Federal do Cariri). Neste processo, ela descobriu um câncer de mama e perdeu o pai na semana entre as duas provas do Enem. Ao UOL, ela conta a sua história.

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'Farmácia atendeu expectativas'

"Fiz meu primeiro vestibular em 2006, ainda não tinha o sistema de ingresso do Enem. Já no momento da inscrição, tinha de escolher o curso e tive muitas dúvidas: área da saúde, farmácia, direito, jornalismo.

Eu passava por problemas financeiros dentro de casa, precisava passar naquele momento, direto da escola. Eu sabia que medicina demandava mais preparação, talvez até um cursinho. E eu não podia isso na época. Tempo era dinheiro, e eu não tinha dinheiro.

Decidi fazer farmácia porque minha irmã era farmacêutica e atuava na área. Ela me falou que era um curso bom e com muitas possibilidades, e, como eu gostava de biologia e química, eu iria gostar. Era o que eu precisava ouvir.

Consegui entrar na UFC (Universidade Federal do Ceará) e, naquele momento, farmácia atendia às minhas expectativas —talvez não de futuro, mas de presente.

Eu sempre carreguei dentro do meu coração que, talvez, eu não estivesse no lugar que eu nasci para ficar.
Mariana Costa

Não sentia que estava fazendo o melhor de mim. Concluí o curso, tive excelentes oportunidades. Sou da área de análises clínicas, trabalho em laboratório, sempre tive muito contato com as amostras.

O paciente se resumia a amostras e isso me deixava uma lacuna muito grande. Quem é essa pessoa? Como é o rosto dela? O que ela está sentindo? Quais as suas angústias? Eu me sentia muito restrita.

Transição de carreira

Ser farmacêutica me possibilitou grandes conquistas: foi por meio da profissão que eu consegui juntar dinheiro e me planejar. Em 2017, procurei ajuda de um psicólogo especializado em transição de carreira.

Entendi que, naquele momento, um mestrado seria bom para mim. Eu queria lecionar e, durante o mestrado, minha pesquisa foi direto com os pacientes. Foi a primeira oportunidade que eu tive de lidar diretamente com as pessoas, colocar em prática o que eu lia nos livros.

O mestrado, que eu tinha feito para aprofundar na carreira de farmacêutica, foi o divisor de águas para tomar minha decisão de seguir carreira na medicina.

Ainda no mestrado, tive aulas com professores da área de oncologia. Quando via eles falando sobre o universo do câncer, eu me apaixonei. Eu até brinco que meu maior incentivo talvez nem seja ser médica, mas ser oncologista.

No final de 2020, eu estava com a decisão tomada. Pedi desligamento da empresa e foquei na rotina de estudos. Tudo isso foi um grande desafio: eu tinha saído do ensino médio havia 15 anos, nunca tinha feito o Enem, não sabia o fluxo da prova, como eram as questões.

Busquei um colégio com excelentes resultados em vestibular, que usa o sistema de ensino SAS Educação, e investi no que eu queria. Fiz cursinho em 2021 e em 2022, e tive boas notas —mas não o suficiente para entrar em medicina.

Neste tempo, tive muito apoio dos meus pais, das minhas irmãs, de toda a equipe pedagógica. Hoje eu vejo que é muito mais fácil, mais leve, pessoas mais velhas decidirem retornar para a faculdade.

Quando eu tinha 18 anos, não via ninguém de 30 anos na universidade. E isso se tornou cada vez mais comum. Os sonhos não envelhecem.
Mariana Costa

Diagnóstico de câncer

Em 2023, estava empolgada e me sentindo preparada. Já tinha comprado meus cadernos, montado meu cronograma. Até que, em fevereiro, enquanto eu tomava banho e fui me enxugar, senti um caroço duro no meu peito. Aquilo me assustou.

Estava sem plano de saúde, não sabia direito o que fazer. No dia 1º de março, recebi o diagnóstico de câncer de mama. Todo o meu planejamento ficou em stand-by porque eu tinha que priorizar a minha saúde.

No dia 29 de março eu passei por uma cirurgia. Fiz a mastectomia bilateral total com reconstrução imediata. Fiz seis ciclos de quimioterapia, entre maio e setembro. Tive vários efeitos adversos: enjoo, o cabelo caiu, a pele ficou ressecada.

É inevitável a gente se questionar sobre o futuro. Eu não pensei que ia morrer, mas me questionei sobre a minha vida futura. Eu tinha planos para serem colocados em prática: me tornar médica.

Mariana realizou o sonho de assistir um show do Simply Red e fez homenagem ao pai - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mariana realizou o sonho de assistir um show do Simply Red e fez homenagem ao pai
Imagem: Arquivo pessoal

Nos momentos ruins, eu pensava nisso. Nos bons, eu aproveitava para estudar. Fazia simulados, provas. O colégio trazia para eu fazer em casa já que não podia me deslocar.

Tentei fazer com que esse período do tratamento não ficasse restrito ao câncer. Eu queria tornar isso parte da minha vida, não a minha vida. No final de 2023, fiz o Enem mais uma vez, com dores e me sentindo cansada. Eu não podia dirigir, então meu pai me levou.

Estava chorando muito e ele me disse, de maneira bem firme, que chorar naquele momento não iria adiantar. 'Você vai entrar naquela sala, vai fazer a melhor prova que você conseguir, e quando sair você chora.' Eu entrei, fiz a prova, e foi o melhor resultado que eu tinha tido até então.

Era um resultado que me permitia ir para a Bahia, Roraima, Rio de Janeiro. Eu só não fui porque meu coração me dizia para ficar no Ceará.

Aproximação e perda do pai

Em 2024, voltei a trabalhar na mesma empresa de onde tinha pedido demissão, porque como paciente oncológica eu precisava deixar minha cabeça ocupada. E pela questão financeira, porque o dinheiro que eu tinha guardado estava perto do fim. Por outro lado, conciliar trabalho e estudo não foi fácil.

Trabalho em plantão noturno dia sim, dia não, e minha rotina é bagunçada. Eu saía do plantão e ia para a casa do meu pai, tomávamos café da manhã juntos, foi um período incrível de aproximação nossa.

Em um desses dias, a gente planejou ir juntos ao show da banda Simply Red, em março de 2025. Era o nosso sonho.
Mariana Costa

E aí chegou o Enem, no dia 3 de novembro de 2024, um domingo. No sábado, meu pai me mandou uma mensagem com uma música da banda. Acordei, fui fazer a prova, saí e fui para o trabalho. Na segunda, fui para casa dormir.

Quando falei com as minhas irmãs, achamos estranho que meu pai não tinha falado com ninguém no domingo. A gente se falava todos os dias. Ele não tinha me desejado boa prova, mas achei que ele tinha se esquecido.

Na segunda, minha irmã foi à casa dele e o encontrou sem vida. Ele já tinha tido alguns AVCs e as artérias e as veias dele estavam bastante entupidas, o que leva a crer que foi um problema cardíaco. Mais uma vez, tudo mudou.

Na terça, ele foi velado e, no domingo seguinte, eu tinha a segunda prova do Enem. Um grande amigo meu, ao me ver chorando muito, me lembrou do que meu pai me disse em 2023. 'Não vai adiantar chorar agora. Você vai entrar naquela sala e fazer a melhor prova.'

Eu alcancei boas notas, mas não foi um resultado tão bom quanto o de 2023, minha nota caiu um pouco. Não fui chamada na lista regular, mas deixei meu nome na lista de espera da UFCA. Eu era a 12.ª e não tinha expectativa de ser chamada.

Aprovação na UFCA

No dia 15 de março, fui para o show do Simply Red com uma camiseta em homenagem ao meu pai. O show estava lotado, estádio lotado, mas a cadeira ao meu lado estava vazia. Senti muito a presença dele ali.

Voltei para Fortaleza e, no dia 21, eu estava trabalhando quando uma amiga me mandou mensagem perguntando se eu estava na lista de espera da UFCA. Quando disse que sim, ela me deu parabéns. Fiquei sem acreditar, senti uma felicidade muito grande.

Acredito que tudo tenha um motivo, porque se eu tivesse passado na faculdade que queria em 2023 eu não teria passado um ano tão próxima do meu pai.

Meu campus fica em Barbalha, no Cariri. Vou me mudar para lá em breve e as aulas começam em novembro. Estou entrando com a motivação da oncologista. O que vai acontecer lá dentro eu não sei, mas o meu coração pulsa pela oncologia.

O câncer é uma doença que ainda me traz, obviamente, certo medo. Mas é uma doença que eu quero enfrentar não apenas como paciente oncológico, mas como uma futura profissional. Eu quero cuidar de gente que, como eu, passou e tem passado por isso."

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