Sem quarentena, ex-diretor da Fazenda antecipa detalhes da tributária

Sem cumprir quarentena, um ex-diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert), ligada ao Ministério da Fazenda, abriu um escritório de advocacia menos de dois meses após deixar o posto e vem promovendo eventos que antecipam detalhes inéditos do sistema que será utilizado para a cobrança dos novos impostos.
O que aconteceu
Advogado abriu escritório especializado após deixar a pasta. Daniel Loria, que atuou na secretaria como diretor de Programa, abriu uma firma especialista em reforma tributária após ser desligado da pasta, em 23 de dezembro do ano passado. Em 12 de fevereiro deste ano, seu escritório de advocacia foi lançado.
Detalhes antecipados. Loria tem feito palestras e promovido eventos com servidores públicos, incluindo o secretário Bernard Appy, que cuida especificamente da reforma tributária. Nesses encontros foram revelados, segundo o próprio Loria, detalhes inéditos das próximas etapas da reforma e de como funcionará o sistema do governo federal para cobrar os novos tributos.
Ao entrar no governo, o advogado combinou um período de apenas dois anos na secretaria. Especialista em direito tributário, ele ficou no cargo de 2023 ao começo deste ano.
A Lei de Conflito de Interesses prevê uma quarentena de seis meses para pessoas que ocuparam cargos estratégicos. Loria, contudo, passou à iniciativa privada sem cumprir esse prazo. A avaliação sobre possíveis conflitos cabe à Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Loria avisou à comissão em outubro do ano passado que teria interesse em montar um escritório de advocacia. Na ocasião, o colegiado liberou sua atuação, com algumas condições, como a de não atuar por seis meses como intermediário de interesses privados perante o Ministério da Fazenda, não divulgar ou repassar a terceiros informações privilegiadas a que teve acesso e também não participar de processos em que tenha atuado, ainda que de maneira inicial, enquanto servidor público.
A avaliação, porém, foi feita sem que fosse apresentada uma proposta formal de trabalho. Na consulta submetida à comissão, ele informou que pretendia criar um escritório para atuar com consultoria tributária, sem relação com o poder público, e também em casos de contenciosos administrativos e judiciais em tribunais com os quais ele não teve relação. O site do escritório afirma que eles atuam em várias frentes, incluindo "consultoria estratégica para a adaptação das empresas às novas regras de tributação sobre o consumo".
Eventos com autoridades
O escritório promoveu, no dia 4 de abril, um evento em São Paulo para cerca de 300 pessoas. Na ocasião, segundo Loria divulgou em seu LinkedIn, foi revelado, pela primeira vez, o sistema operacional do CBS, o novo imposto cobrado pela União a ser implementado com a reforma. A iniciativa teve cobertura da imprensa e foi divulgada nas redes sociais do escritório.
Demonstração do sistema foi feita por Robson Lima, do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados). A empresa, vinculada ao Ministério da Fazenda, é responsável pelo desenvolvimento do sistema. Lima é o gestor nacional do projeto da reforma na empresa. O secretário Bernard Appy, além de parlamentares, como o senador Eduardo Braga (MDB-AM) e os deputados Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e Mauro Benevides (PDT-CE), participaram do evento.
Live dá detalhes do novo sistema. No último dia 14, o canal do escritório no YouTube realizou uma live na qual também foi exibido o funcionamento do sistema. Lima participou do evento, além do gerente do programa para implementação dos sistemas operacionais da reforma na Receita Federal, Marcos Hübner Flores, e de Luiz Dias de Alencar Neto, membro titular do pré-comitê gestor do CBS, uma iniciativa conjunta de estados e municípios para discutir como operacionalizar a reforma.
Órgãos negam favorecimento
Fazenda e Serpro negaram conflito de interesses e minimizaram a divulgação do sistema. Em nota ao UOL, o Ministério da Fazenda afirmou que Appy vem participando de eventos relacionados à discussão da reforma tributária, inclusive de outros escritórios de advocacia, e citou um outro encontro realizado em 21 de fevereiro. A pasta também disse que, no evento do dia 4, "não havia qualquer material que pudesse resultar em benefício comercial ou financeiro para os presentes".
Já o Serpro afirmou que apresentações fazem parte de "estratégia institucional" da empresa. Ela quer contribuir na disseminação de informações sobre a reforma tributária. A estatal afirmou que nenhum de seus funcionários recebeu dinheiro para participar dos eventos e que a interface apresentada no dia 4 de abril já havia sido exibida em outros "espaços técnicos" neste ano. Ainda enviou uma relação de eventos públicos e privados nos quais seus funcionários têm tratado da reforma tributária e exposto o sistema.
O escritório não viu "vantagem competitiva". A firma disse que o Serpro tem feito exibições do sistema em vários outros eventos. Segundo a banca, o trabalho desenvolvido pela Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária é "público" e contou com participação da sociedade civil, de escritórios de advocacia e entidades de classe.
Loria fala em "informações públicas". Ao UOL, Daniel Loria afirmou que todas as informações a que teve acesso na secretaria são públicas, pois já foram apresentadas nos projetos de lei aprovados. Ele disse que seu escritório segue à risca a restrição de não representar interesses privados junto à Fazenda e que não participou dessa fase atual dos debates da reforma, de regulamentação e operacionalização dos novos tributos. "Consultoria na lei que já está publicada, essa está permitida, agora a Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária não tem mais participação nisso", afirmou o advogado.
Sem vantagem, defende advogado. Questionado se não via vantagem dele para atrair servidores públicos e outras autoridades para seus eventos, ele disse que não. Segundo advogado, há uma orientação geral do governo para que os envolvidos na reforma tributária participem de eventos para ajudar a informar a população e esclarecer informações. "Com certeza não tem nada único do meu evento, poderia ser no meu e poderia ser no vizinho ali [em referência a outros escritórios de advocacia]."
O que dizem os envolvidos
Entendemos que não há vantagem competitiva ou mesmo conflito de interesses na atuação do escritório. O trabalho desenvolvido pela Sert/MF é público e contou com a ativa participação da sociedade civil, escritórios de advocacia e entidades de classe. A Sert/MF contribuiu para o aprimoramento da redação de projetos de lei, todos disponíveis ao público.
Escritório Loria Advogados, em nota encaminhada ao UOL
A Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert) não vê qualquer conflito ético na participação do secretário no evento promovido pelo Loria Advogados, pois trata-se de evento semelhante a outros em que há a participação do secretário ou de servidores da Sert. Com relação à divulgação da interface dos sistemas que estão sendo desenvolvidos, como já mencionado anteriormente, não foi divulgada nenhuma informação sigilosa nem nenhuma informação que possa ter gerado algum benefício comercial ou estratégico para os participantes do seminário.
Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, em nota encaminhada ao UOL
Não houve, em nenhum momento, conduta antiética por parte de seus empregados ou repasse de informações privilegiadas. A atuação da empresa tem sido pautada pela transparência, isonomia no acesso às informações e compromisso com a qualidade da transformação digital do Estado.
Serpro, em nota encaminhada ao UOL
A CEP entendeu pela inexistência de conflito de interesses após o desligamento do cargo público, dispensando-o do cumprimento do período de quarentena e do pagamento de remuneração compensatória (...) Quanto à participação em eventos, a CEP não foi consultada sobre a matéria, razão pela qual não emitiu posicionamento acerca de possíveis conflitos de interesses decorrentes dessa atividade.
Comissão de Ética Pública, em nota encaminhada ao UOL