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ANPD: desconto em remédio em troca do CPF é 'potencialmente fictício'

Fabrizio Motta/FotoArena
Imagem: Fabrizio Motta/FotoArena
do UOL

Do UOL, em São Paulo

19/04/2025 05h30

A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) entende que os descontos concedidos em troca do CPF em farmácias são "potencialmente fictícios".

O órgão vê um "cenário bastante grave" na política de uso de dados dos pacientes. A avaliação consta em uma nota técnica de fevereiro, que propôs atuação conjunta com outros órgãos para levantar mais dados.

O que aconteceu

A ANPD viu 'fortes evidências' de que os preços cheios dos remédios 'não condizem com a realidade', permitindo 'descontos expressivos, mas potencialmente fictícios'. A distorção é provocada por uma tabela federal que estabelece o preço máximo dos remédios. Essa tabela está superfaturada, segundo o Tribunal de Contas da União. Para a ANPD, o setor farmacêutico parece ser o único a operar dessa forma no Brasil.

Os descontos em troca do CPF 'induzem' o consumidor a informar seus dados, mesmo sem 'o necessário esclarecimento' sobre como serão usados, diz a ANPD. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) define que o consumidor precisa receber informações claras sobre o que será feito com seus dados, podendo autorizar ou não o uso deles. Mas, segundo pesquisa do órgão, essas informações não estão sendo fornecidas.

'Dificilmente alguém deixaria de usufruir' dos descontos, 'ainda que sua privacidade e seus dados pessoais estivessem em risco', avalia o órgão. A ANPF destaca que não informar o CPF na farmácia resulta em "prejuízo financeiro direto". Por isso, mesmo que o cliente tenha concordado com o uso dos dados -"o que não parece ser" o caso-, esse consentimento "não pode ser considerado livre".

As análises da ANPD foram apresentadas em nota técnica de fevereiro deste ano. O órgão, ligado ao Ministério da Justiça, é responsável por monitorar a proteção de dados pessoais no Brasil. No mesmo documento, a ANPD instaurou processo de sanção e auto de infração contra a RaiaDrogasil, maior rede de farmácias do país, por "supostamente" usar os dados para criar perfis comportamentais dos clientes e monetizar os dados para anunciantes.

Em 2023, reportagem do UOL mostrou evidências de que grande parte dos descontos nas farmácias é fictícia. O fornecimento do CPF em troca dos descontos permite que as farmácias criem bancos de dados com o histórico de saúde dos clientes. No caso da RaiaDrogasil, os dados eram armazenados por até 15 anos e monetizados para anunciantes, que escolhiam o público que iria receber a propaganda digital com base no que compravam na farmácia.

ANPD sugeriu que seja feita pesquisa mais aprofundada sobre o tema e que órgãos do governo federal cooperem para avaliar o cenário. Entre eles, a Anvisa e o Procon. A ANPD avaliou que os problemas encontrados extrapolam a LGPD, mas "derivam da coleta e do tratamento de dados pessoais, inclusive sensíveis, supostamente sem a observância dos preceitos legais, conforme os indícios robustos apontados".

Mesmo que o consumidor tivesse o devido acesso a informações claras, inequívocas e completas acerca do tratamento de seus dados pessoais, os descontos são tão expressivos que dificilmente alguém deixaria de usufruir de tais benefícios, ainda que sua privacidade e seus dados pessoais estivessem em risco. Ou seja, tal consentimento não pode ser considerado livre
ANPD, em nota técnica de fevereiro de 2025

Uso de dados é 'bastante grave', diz ANPD

A ANPD encontrou 'omissões e inconsistências consideráveis' nas políticas de tratamento de dados da indústria farmacêutica. O órgão pesquisou os documentos de alguns dos principais laboratórios em atuação no país. Segundo o relatório, "de maneira geral, as informações prestadas ao titular de dados [consumidor] são falhas e insuficientes". Assim, não é possível saber de que forma as informações serão usadas.

Alguns laboratórios recebem dados de pacientes e médicos em troca de descontos aplicados na farmácia. São os chamados programas de benefício de medicamentos, vinculados a medicamentos de marca —os de referência, os primeiros a entrar no mercado, e os similares. Genéricos não entram. É diferente dos descontos oferecidos diretamente pelas farmácias. Nesse caso, os dados do cliente não ficam só na farmácia, mas também são repassados para a indústria.

No caso de dados de pacientes, ANPD viu problemas como falta de esclarecimento para o motivo armazenamento do histórico de compras. O órgão encontrou ainda casos em que o laboratório diz que pode armazenar até comprovante de renda, informações de laudos médicos e histórico de tratamento realizados. Há ainda a possibilidade de compartilhar dados com terceiros no exterior.

Já no caso de dados de médicos, a ANPD diz haver monitoramento do que cada um prescreve. Os dados são usados pela indústria farmacêutica para elaborar "estratégias de marketing" junto aos médicos, segundo o órgão, visando promover uma determinada marca de medicamentos. Além disso, os dados permitem "aferir a efetividade" do marketing, ou seja, se os médicos realmente prescreveram aquela marca.

Isso gera 'potenciais prejuízos ao consumidor', que escolhe a marca do remédio com base na confiança que tem no médico, avalia a ANPD. "O paciente não detém as informações necessárias para fazer a escolha de seu produto de forma independente", afirma. E a recomendação de uma determinada marca pelo médico "pode dificultar que o paciente opte por medicamentos genéricos".

Reportagens do UOL revelaram um esquema milionário de vigilância das prescrições médicas em farmácias. Os dados são coletados mesmo que o paciente não informe o CPF ou não compre o produto. Basta apresentar a prescrição no balcão que o número do registro do médico e o que ele prescreveu são registrados em um banco de dados. A indústria farmacêutica depois compra acesso às informações.

Só em Minas Gerais, a indústria farmacêutica gastou R$ 200 milhões com médicos em seis anos. São viagens para congressos, pagamentos de palestras, compra de objetos para o consultório, jantares, brindes. Minas Gerais é o único Estado do país com uma lei que obriga a divulgação dessas informações. Diversos outros países, como Estados Unidos, têm leis nacionais desse tipo.

A pesquisa preliminar acerca da política de tratamento de dados pessoais divulgada por alguns dos maiores laboratórios farmacêuticos em atuação no país apontou que, de maneira geral, as informações prestadas ao titular de dados são falhas e insuficientes (...) As omissões e inconsistências são consideráveis, o que torna o cenário bastante grave.

O monitoramento das prescrições é usado não somente para elaborar as estratégias de marketing junto aos médicos, mas também para aferir a efetividade das políticas adotadas. (...) Essas práticas tendem a influenciar a escolha da prescrição dos medicamentos, o que fragiliza o sistema regulatório e gera potenciais prejuízos ao consumidor.

Foi possível observar uma série de distorções envolvidas no mercado de medicamentos (...) capazes de gerar prejuízos relevantes aos titulares de dados e consumidores. Embora os problemas observados envolvam questões que extrapolam a LGPD, é evidente que tais práticas derivam da coleta e do tratamento de dados pessoais, inclusive sensíveis, supostamente sem a devida observância dos preceitos legais, conforme os indícios robustos apontados.
ANPD, em nota técnica de fevereiro de 2025

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