Zema libera área para rejeitos da CSN em local já cobiçado por ouro

Um decreto do governo de Romeu Zema (Novo) que autoriza a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) a desapropriar 261 hectares para depositar pilhas de rejeitos de minério de ferro próximo aos bairros Santa Quitéria e Plataforma, em Congonhas (MG), tem causado medo e desconfiança entre os moradores.
Santa Quitéria tenta ser reconhecida como quilombola, mas teme "desaparecer" em razão da instalação do depósito de rejeitos a menos de 100 metros da comunidade. O local receberá os materiais descartados da mina Casa de Pedra, um dos maiores complexos minerários do Brasil, operado pela CSN.
Já no bairro Plataforma, uma "área fantasma" anteriormente afetada por um projeto de expansão da mineradora na região, os moradores criticam os baixos valores das propostas de indenização oferecidas pela empresa.
Outra questão tem despertado desconfiança nas duas comunidades: o fato de a empresa e o governo Zema não terem informado que a área coincide, em grande parte, com um território onde a própria CSN obteve autorização para pesquisar ouro.
Levantamento feito pela Repórter Brasil mostra que grande parte dos 261 hectares a serem desapropriados se sobrepõe à área liberada pela ANM (Agência Nacional de Mineração) à mineradora (Veja mapa abaixo).
À reportagem, no entanto, a CSN afirma que "nunca houve e não haverá qualquer pesquisa sobre ouro. As áreas são destinadas aos projetos de minério de ferro da CSN Mineração". Leia as respostas na íntegra.
O decreto nº 496/2024, assinado por Zema, concedeu à mineradora o direito de desapropriar terras consideradas "de utilidade pública" para a expansão da mina Casa de Pedra. A justificativa é a instalação da Pilha de Rejeito Filtrado Sul Maranhão 1, uma estrutura que armazenará resíduos sólidos da mineração.
Diferentemente das barragens de rejeitos, que acumulam os resíduos minerários misturados com água, o descarte por pilhas compacta o material seco. Em tese, isso reduz o risco de rompimentos catastróficos, como ocorreu nas estruturas da Vale, em Brumadinho, e da Samarco, em Mariana, ambas na mesma região central de Minas Gerais, que adotam o modelo de barragens.
No entanto, as pilhas de rejeito também estão sujeitas a deslizamentos. Em dezembro, uma pilha da Jaguar Mining, em Conceição do Pará, no oeste de Minas Gerais, desmoronou e desalojou moradores próximos.
Em nota enviada à reportagem, o governo de Minas Gerais diz que, segundo o Decreto-Lei 3.365 de 1941, a mineração é uma atividade considerada de utilidade pública no Brasil, e que os dados da ANM foram "devidamente consultados" no processo. Veja a nota na íntegra aqui.
Lavrador se sente 'acuado' com movimentação da empresa próxima à comunidade
Com cerca de 400 moradores, Santa Quitéria é uma comunidade pacata. No entanto, desde a publicação do decreto de desapropriação, seu clima bucólico foi alterado. "Aqui era tranquilo demais da conta. Os meninos brincavam na rua sossegados, mas agora as caminhonetes das firmas ficam subindo e descendo o tempo todo", conta a moradora Aline Soares Marcos.
Os habitantes do local também relatam se sentirem vigiados com o voo constante de drones das empresas a serviço da CSN, que filmam e medem os terrenos em volta da comunidade. "A gente se sente acuado", diz o lavrador Sebastião Paulino Sobrinho.
Aos 62 anos, Tião, como é conhecido, não se imagina vivendo longe da comunidade, onde passou toda a vida. "Se, por um acaso, eles colocarem as pilhas de minério, nós vamos ficar no meio. Aí fica ruim demais", lamenta. Ele diz que pode até morar em outro lugar, mas que sairia com "o coração na mão".
Sobre o receio de Tião, a CSN diz: "áreas eventualmente adjacentes à comunidade Santa Quitéria serão utilizadas como uma área de distanciamento, com predominância de cobertura arbórea e sem quaisquer empilhamentos de rejeitos". Segundo a empresa, as comunidades vizinhas às áreas do decreto de desapropriação não serão impactadas.
No caminho entre o centro de Congonhas e a comunidade, é possível ver a paisagem carcomida pela mineração. A imensa barragem Casa de Pedra, da CSN, assusta os moradores dos bairros Cristo Rei e Residencial, localizados em seu sopé. Em 2019, uma creche e uma escola foram desativadas, por medo da população e determinação da prefeitura, pois, caso a barragem rompesse, as crianças não teriam tempo de correr para se salvarem.
Após passar pela escola e creche desativadas, segue-se por uma área de chácaras e sítios até alcançar Santa Quitéria. "A gente vai ficar embaixo da pilha de rejeitos", teme Aline Soares Marcos, destacando que as áreas cobiçadas pela CSN ficam topograficamente acima da comunidade.
Ela está à frente de um movimento que tenta reunir documentos e registrar depoimentos para comprovar que o local foi, no passado, uma área quilombola. A moradora de Santa Quitéria acredita que a única chance de a comunidade não ser afetada é acelerar esse processo de certificação. "Se não conseguirmos o reconhecimento rápido, corremos o risco de desaparecer como comunidade", diz.
A resistência do 'bairro fantasma'
O medo dos moradores de Santa Quitéria tem justificativa. A CSN já transformou uma comunidade inteira em um local fantasma. Entre 2006 e 2008, mais de cem famílias do antigo bairro Plataforma, a cerca de seis quilômetros de distância, foram forçadas a sair de suas casas. O motivo alegado foi a construção de uma usina de pelotização pela CSN, que transforma finos de minério de ferro em pelotas esféricas. Apesar da retirada das famílias, o projeto bilionário nunca saiu do papel.
Entre as poucas famílias que resistiram no local estão as irmãs Rebeca e Gisele Oliveira Santana. "O bairro ficou fantasma. Não tem escola, não tem infraestrutura. Ficamos cercados pelo minério", diz Rebeca.
A maioria da comunidade aceitou receber indenização ou casas construídas em terrenos menores em um novo bairro. Segundo Rebeca, isso destruiu o modo de vida local. "Aqui as pessoas plantavam, trocavam alimentos entre si, criavam animais", conta. "Agora, os terrenos são pequenos, não tem mais como viver da terra. E ainda temos que conviver com o barulho do carregamento de minério 24 horas por dia", completa.
Agora, o terreno da família está dentro da área autorizada para desapropriação pelo governo Zema no ano passado. Rebeca conta que já receberam uma proposta, enviada pelo correio, mas consideram o valor insignificante. "É impossível comprar um terreno semelhante com esse valor. Aqui tem árvores centenárias: abacate, jaca, jabuticaba. Isso não se compra", afirma.
A irmã de Rebeca, Gisele, fica revoltada ao saber que as áreas cobiçadas pela CSN estão no mesmo local autorizado para pesquisa de ouro: "Eles [CSN] vêm com essa mixaria [de indenização] e querem ganhar bilhões nas nossas costas. Querem escorraçar a gente daqui, e com o governo [estadual] apoiando".
Segundo a CSN, foram estabelecidas "tratativas negociais amigáveis" com os proprietários, com "condições comerciais absolutamente justas". A empresa afirma já ter negociado 90% da área prevista no decreto de desapropriação.
Informações desencontradas geram insegurança na comunidade
Os direitos de pesquisa de ouro na região foram adquiridos pela CSN em um leilão realizado pela ANM em 2021. Dois anos depois, a empresa enviou um relatório de pesquisa para a agência governamental em que não menciona o minério, mas afirma ter encontrado uma provável reserva de 857,5 milhões de toneladas de rocha granítica, ou seja, granito.
No entanto, os registros públicos da ANM ainda indicam que o minério pesquisado ali é ouro. Tal fato despertou a desconfiança dos moradores de Santa Quitéria, que temem receber indenizações mais baixas do que deveriam, caso a área seja destinada para esse fim.
Questionada pela Repórter Brasil, a CSN afirma que solicitou formalmente a alteração do minério pesquisado para granito em agosto de 2023 e encaminhou à reportagem o documento que comprova o pedido. Segundo a empresa, a ANM ainda não atualizou essa informação em seu site.
Procurada, a agência disse que os requerimentos iniciais foram para pesquisa de ouro, mas que ainda não concluiu a análise do estudo apresentado pela CSN em 2023. Leia a íntegra do posicionamento aqui.
Leia a reportagem completa aqui.