'Me consideram estranho para vagas gerais e normal demais para cargos PCD'

Américo Júnior, 35, perdeu as contas de quantas vezes fez entrevistas de emprego e não foi contratado, mesmo com a sensação de que tenha se saído bem. O estudante de Brasília (DF) vivencia na pele a dificuldade em ingressar no mercado de trabalho por ter TEA (Transtorno do Espectro Autista). "Normalmente, me consideram estranho para as vagas gerais e normal demais para os cargos PCD", diz. A Lei 12.764/12 determina que a pessoa com TEA é considerada alguém com deficiência para todos os efeitos legais.
De acordo com Américo, essa dificuldade de inserção no mercado de trabalho se deve aos estereótipos criados sobre os autistas. "Muitos imaginam que somos gênios como Temple Grandin [famosa autista americana] ou que não temos qualificações para a empresa correr o risco de contratar", diz. Isso faz com que muitas empresas optem por outros tipos de deficiência no lugar do autismo na hora da contratação de pessoas com deficiência.
Para que uma pessoa com autismo tenha sucesso no mercado de trabalho, o empregador precisa também adequar de forma pedagógica essa vaga, com previsibilidade de rotinas, redução de estímulos visuais e auditivos. Mas o que acontece é muitas optam por caminhos mais fáceis e procuram pessoas com deficiências físicas, por exemplo, quando a adaptação pode ser apenas do espaço físico. Lucinete Andrade, presidente da Abraci (Associação Brasileira de Autismo Comportamento e Intervenção)
Segundo o IBGE, oito em cada dez profissionais brasileiros com autismo (85%) estão desempregados. Esse número é bem maior do que outros países, como Reino Unido e Austrália, onde o índice de desemprego de autistas é de 29% e 38%, respectivamente.
De acordo com Luciana Morilas, professora do departamento de administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP de Ribeirão Preto, muitos empresários não sabem como lidar com uma pessoa com TEA e preferem continuar com as mesmas estratégias de contratação.
"Normalmente, os empregadores enxergam os autistas como pessoas problemáticas. Muitos infelizmente imaginam que ao contratar uma pessoa com autista, essa pode gerar conflitos com a equipe ou demora nos prazos da empresa", aponta Américo, que apenas conseguiu entrar no mercado de trabalho por meio de um concurso público, atuando como professor temporário.
Carreiras promissoras para autistas
Pessoas com TEA têm ótimas habilidades de concentração, memória visual de longo prazo e possuem facilidade em conhecimentos matemáticos. Essas características fazem a área da tecnologia ser uma das que os autistas mais se destacam.
Em contrapartida, empregos que envolvam atendimento ao público geram mais dificuldade. "Tudo depende do nível de autismo da pessoa, pois toda deficiência é individual", aponta Morilas.
Quem aproveitou de suas habilidades para ser contratada foi Camila Signorini Perroud, 32, hoje analista de qualidade de software. Mas ela foi contratada antes de descobrir o autismo, o que aconteceu quando tinha 29 anos. "Dois fatores contribuíram para essa descoberta tardia: ser mulher e ter superdotação ou altas habilidades. Estereótipos de gênero fazem com que comportamentos autistas em mulheres passem despercebidos. Além disso, a superdotação dificultou o meu diagnóstico, pois, com a facilidade de aprender, eu rapidamente percebia quando meu comportamento destoava das normas sociais e me ajustava, mesmo que isso me causasse um grande desconforto", conta.
Na escola, Camila sofreu bullying, chegando a ser agredida fisicamente por colegas. Essa hostilidade continuou na adolescência e na vida adulta. "O autismo, em vários momentos, colocou minha integridade física e emocional em risco. Essas experiências contribuíram para quadros depressivos, pois eu não entendia o que havia de 'errado' comigo", diz. Sua dificuldade em assimilar o conteúdo em sala de aula devido a características clássicas do autismo (dificuldade de socialização e de manter rotina, rigidez cognitiva e inquietação física) atrapalharam ainda mais sua vida.
"Lembro de um professor que quis zerar minha prova porque não acreditava que uma aluna tão inquieta pudesse tirar notas altas —algo que aconteceu mais de uma vez. Eu também era muito questionadora durante as aulas, o que alguns professores viam como curiosidade e interesse, mas outros interpretavam como desafio ou afronta", diz.
Ao crescer, diferente da maioria dos autistas, Camila não sofreu dificuldades para ingressar no mercado de trabalho. Isso porque ela aproveitou das suas altas habilidades para compensar suas dificuldades. "Na empresa que atuo, entrei como assistente no time de operações, antes de saber sobre meu autismo. O processo seletivo foi tranquilo: uma entrevista e um teste. Digo que o autismo pode tanto ajudar quanto dificultar nesse aspecto."
Morilas ressalta que uma pessoa que tem TEA costuma ser muito detalhista e focada em algumas tarefas, com alta capacidade de realizar atividades com precisão. Essa característica pode ser bem aproveitada em uma área que exija atenção minuciosa e cuidadosa, como a checagem de defeitos de produtos em uma linha de produção ou TI, por exemplo.
A ideia é sempre aproveitar as melhores características de cada indivíduo, mas os processos seletivos costumam ser engessados e eliminatórios a partir de outras características que muitas vezes nem são relevantes para aquele cargo em especial. Exigir ensino médio, por exemplo, pode eliminar muitas pessoas com deficiência, já que elas têm mais dificuldades para cumprir com o ensino formal, que também é bastante inflexível. Luciana Morilas, professora do departamento de administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP de Ribeirão Preto
Lei obriga contratação
No Brasil, desde a década de 1990, empresas são obrigadas pela Lei nº 8.213/1991 a contratar um determinado percentual de empregados com deficiência. Anos depois, a Lei 12.764/12 (Lei Berenice Piana) determinou que pessoas com TEA são pessoas com deficiência para todos os efeitos legais. "Portanto, a contratação dessas pessoas ajudaria as empresas a cumprirem com a regra legal", ressalta Morilas.
Conforme a legislação, as proporções para empregar pessoas com deficiência variam de acordo com a quantidade de funcionários.
De cem a 200 empregados, a reserva legal é de 2%;
De 201 a 500 empregados, a reserva legal é de 3%;
De 501 a 1.000 empregados, a reserva legal é de 4%.
Empresas com mais de 1.001 empregados devem reservar 5% das vagas para pessoas com deficiência.
Empresas que descumprem a regra podem ser penalizadas com uma multa que pode chegar a R$ 265 mil.
O que pode ser feito?
Andrade defende que algumas dicas podem ajudar no processo de seleção empregatícia de pessoas com autismo. "A pessoa com TEA deve primeiro buscar informações acerca da empresa e não esconder sua deficiência na entrevista de emprego", diz. Já o recrutador deve organizar um local com menos estímulos auditivos e visuais para receber o candidato autista. "Também é importante preparar funcionários para que com linguagem objetiva e direta antecipem aos candidatos os passos até a entrevista, reduzindo sua ansiedade."
A presidente da Abraci também aponta que pessoas com autismo têm dificuldade em interpretar brincadeiras e ironias. Assim, uma frase como "você tem que vestir a camisa da empresa" pode ser entendida literalmente e a pessoa com TEA esperará receber uma camisa da empresa. Por isso, o melhor a dizer é que espera que a pessoa se dedique à empresa.
"O recrutador (e nenhuma pessoa, na verdade) deve agir com piedade ou benevolência porque a pessoa tem deficiência. A PCD deve ser tratada como qualquer outro candidato, respeitada sua individualidade. Se você sabe que um cadeirante não consegue subir escadas e vai fazer a entrevista no térreo para facilitar a chegada dessa pessoa, por que não agir da mesma forma com uma pessoa com TEA? As deficiências invisíveis são ainda mais estigmatizantes, afinal muitos acham que é apenas frescura que uma pessoa tenha sensibilidade a ruídos altos ou a distrações", diz Morilas.
Onde denunciar?
Caso o candidato note que não foi selecionado para uma vaga PCD por uma situação de preconceito, ele deve formalizar as atitudes do recrutador e a empresa através de uma denúncia nas delegacias do trabalho ou do Ministério Público do Trabalho.
A lei trabalhista brasileira impede a discriminação de qualquer trabalhador no momento da contratação. Para provar, é importante guardar todas as interações com a empresa (no caso de telefonemas, anotar dia e hora e com quem falou) e descrever de modo claro e direto as conversas com os recrutadores, orienta Morilas.