Criptogate: Milei enfrenta avalanche de denúncias após promover criptomoeda e lesar investidores
"Escândalo cripto" ou "Criptogate"? O nome do terremoto político e econômico é o que menos importa para milhares de afetados por uma publicação do presidente Javier Milei que induziu investidores a comprarem uma moeda digital de legitimidade duvidosa. Milei foi inepto ou parte da fraude? O presidente escolheu passar por inepto: "agi de boa-fé. Não sou um especialista. De criptomoedas, não sei nada".
Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
Nesta terça-feira (18), primeiro dia útil após o feriado em Wall Street, o presidente Javier Milei passará pela primeira prova de fogo do mercado no escândalo cripto.
O veredito do mercado norte-americano permitirá ter a dimensão do estrago na reputação do presidente, pivô de uma trama que lesionou financeiramente milhares de investidores.
Nesta segunda-feira (17), a bolsa de Buenos Aires desabou e a moeda argentina perdeu valor. As ações encolheram, em média de 5,6%, mas houve quedas de até 8%. As ações com cotação em dólares perderam 6,5% em média. A cotação do dólar financeiro, de acesso livre, subiu 2%. Os títulos públicos argentinos em dólar tiveram perdas de 2,5% em média.
O escândalo afeta os ativos argentinos porque provoca que investidores freiem decisões e que duvidem da credibilidade do governo.
Os mercados também vão reagir às explicações do presidente argentino, na noite desta segunda-feira (17), após promover uma criptomoeda de nula legitimidade.
O impacto do escândalo nos ativos de empresas e do Estado argentino está associado às chances de Javier Milei sofrer um processo de destituição, algo que, por enquanto, parece improvável.
Porém, se for instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, Milei pode ter um desgaste político. O mesmo vale se a Justiça indiciar o presidente por violar artigos do código penal, da lei de entidades financeiras e da lei de ética pública.
Desdobramentos políticos e judiciais
Já chegaram à Justiça mais de 100 denúncias com diversas acusações contra o presidente Javier Milei por promover uma criptomoeda que se tornou um golpe e provocou perdas milionárias.
São acusações de fraude, de negociações incompatíveis com a função pública, de mal desempenho, de condutas contrárias à ética pública, de conflito de interesses, de tráfico de influências e até de associação criminosa.
Essas denúncias são, principalmente, de organizações sociais, políticas e jurídicas. Também de opositores políticos.
No terreno legislativo, a oposição quer avançar num processo de destituição, mas não conta com os votos suficientes. São necessários dois terços das câmaras.
Por enquanto, um processo de destituição está longe de ganhar força, a não ser que surjam provas.
Os mais moderados e até os aliados do governo estariam mais inclinados para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, mas também não está claro que consigam quórum para aprovar a criação da CPI para a qual só é necessária uma maioria simples.
Nos Estados Unidos, um escritório de advocacia, que diz representar 40 investidores lesados, entrou com uma denúncia por "operações criminosas", pedindo a intervenção do Departamento de Justiça, do FBI e da Comissão de Valores dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês).
O próprio presidente Javier Milei, numa estratégia para mostrar inocência, pediu que o Escritório Anticorrupção o investigasse.
Milei também quer criar uma Unidade de Tarefas Investigativas (UTI), composta por representantes de organismos relacionados com criptomoedas, atividades financeiras e lavagem de dinheiro.
Milei se defende
O presidente Javier Milei deu uma entrevista na noite de segunda-feira para se defender das acusações e para dar a sua versão dos fatos. Disse que não promoveu a criptomoeda, mas que a difundiu. A diferença semântica é sutil, mas tenta se adaptar à lei de ética pública que penaliza a promoção.
O presidente também alegou que os investidores nessa moeda sabiam do risco porque são especializados nesse tipo de ativo.
"Se você for ao Cassino e perder dinheiro, não tem reclamação", disse.
O mercado de "moedas meme" realmente é como um cassino, mas Milei promoveu a moeda como um investimento para financiar pequenas empresas. Não promoveu como uma "moeda meme", mas como uma criptomoeda convencional.
Milei também comparou o risco como o de "jogar com a roleta russa" num revólver. Nesse caso, disse o presidente, "foi a vez da bala".
Ele também minimizou o número de afetados. "Não foram 44 mil. Foram, no máximo, cinco mil", disse, acrescentando que "quase não havia argentinos". "A maioria era de norte-americanos e chineses", nenhum "cidadão comum".
Sem assumir nenhuma culpa, Milei garantiu que "agiu de boa-fé", que "não é um especialista em criptomoedas", que "de criptomoedas, não sabe nada" e que "não recebeu dinheiro para divulgar a operação".
Só teve uma limitada autocrítica num ponto: foi quando disse que "precisa aprender a colocar filtros para selecionar as pessoas que têm acesso a ele".
No entanto, esta não é a primeira vez que Milei promove uma empresa de criptomoeda nem que leva muitas pessoas a perderem dinheiro. Em 2022, já como deputado, recomendou uma empresa de criptomoeda chamada CoinX. Na época, reconheceu que foi pago pela recomendação. A empresa foi acusada de manobras fraudulentas numa espécie de esquema de pirâmide.
Publicação na rede social
Javier Milei é o presidente de um país e se autopromove como um grande economista que ganha prêmios todos os meses, a cada nova viagem. Uma difusão de Milei, portanto, tem uma influência muito grande.
O presidente alega que não usou uma conta da Presidência na rede X, mas a pessoal. Na prática, porém, essa conta particular é a de um presidente que está difundindo um projeto de criptomoeda. É a conta que Milei usa habitualmente.
Outro ponto é que "moedas meme" são difundidas como tal. Neste caso, foi difundida como um projeto para financiar pequenas empresas, algo que induz ao erro.
Um terceiro ponto que indicaria haver promovido a moeda é que Milei incluiu no final da publicação dois links diretos ao projeto e à compra da criptomoeda, incluindo ainda o contrato.
Essa "moeda meme", de nome $Libra, não existiria se não fosse a publicação de Milei. Na noite de sexta-feira (14), o presidente publicou na rede X sobre o ativo financeiro. Em clara coordenação com o projeto, o ativo tinha sido criado apenas três minutos antes e não tinha tido nenhum investidor.
Após a publicação de Milei, em questão de minutos, a moeda tinha recebido cerca de US$ 4,4 bilhões em investimentos.
A cotação da moeda passou de zero a quase cinco dólares. Os donos do projeto ficaram com mais de 80% das moedas concentradas em cinco carteiras virtuais. Venderam tudo quando a cotação estava no alto. Tiveram um lucro de U$ 110 milhões.
Na mesma velocidade da alta, veio a queda. A moeda voltou ao valor próximo de zero, deixando milhares de lesados pelo mundo.
Milei manteve a publicação durante cerca de cinco horas. Depois apagou e, numa posterior, argumentou que não estava familiarizado com pormenores do projeto que acabava de promover.