Ida do governo a centro de SP vai retirar 600 famílias: 'Rasteira na gente'

O plano de São Paulo para instalar a sede do governo no centro vai empurrar moradores de cinco quarteirões para fora de suas casas. O projeto prevê a retirada de 600 famílias do entorno da praça Princesa Isabel para abrir espaço para uma esplanada com novos prédios do Centro Administrativo.
O que aconteceu
Moradores e comerciantes ficaram sabendo que perderiam seus imóveis pela imprensa. Eles contaram ao UOL que nenhum agente público procurou representantes das quadras afetadas para informar sobre a desapropriação da área antes do anúncio, em março de 2024. O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) diz que o projeto vai reocupar e revitalizar o centro.
Cinco quarteirões do bairro Campos Elíseos foram declarados de utilidade pública para abrir caminho para a desapropriação. Os terrenos da praça Princesa Isabel e o complexo que hoje abriga o Terminal Princesa Isabel, que pertenciam à gestão municipal, foram doadas ao governo estadual pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB).
"Rasteira na gente"
A quadra onde mora o professor Odair Paulo Tognon, 50, será totalmente demolida. O apartamento dele, com vista livre para a praça Princesa Isabel, é a realização de um sonho. "Fiquei anos namorando esse apartamento. Achei que ia viver aqui o resto da minha vida, que seria a casa da minha velhice".
Ele conta que começou a tomar remédios para dormir após descobrir que perderia sua casa. "Se tornou uma frustração, meu sonho foi por água abaixo. Às vezes estou andando e choro. Até as árvores aqui têm nome para mim".
Se estou aqui até hoje é porque acredito em um centro melhor. Por que não propuseram um projeto ouvindo os moradores? Chegaram dando uma rasteira na gente.
Odair Paulo Tognon, mora no centro de SP há 25 anos
O consultor de dados Gustavo Pontes, 35, e a esposa Cecília Corsi vão perder o apartamento que financiaram em 2021 por 30 anos. Eles escolheram um prédio reformado dos anos 1950 porque poderiam ter um espaço maior, morando no centro da cidade.
Agora, o casal tem medo de continuar com a dívida após a desapropriação porque o imóvel fica perto de um fluxo da Cracolândia, e pode ser desvalorizado. "Se eu receber uma indenização menor do que o que estou devendo, vou ter que continuar pagando o banco".
Eles até abandonaram um plano de reformar o apartamento. "Logo que nos mudamos eu fiquei endividado, peguei dinheiro emprestado para a entrada e as documentações. Terminei de pagar a dívida no começo do ano passado e íamos reformar o escritório. Foi quando saiu a notícia da desapropriação", contou Gustavo. "Nós dois trabalhamos em casa, era importante ter um espaço confortável, mas desistimos. Foi bem triste".
Essa notícia gerou um estresse muito alto, uma revolta. É nosso primeiro apartamento, não sou de uma família com dinheiro, estudei em escola pública, fui bolsista na faculdade. Quando parece que a gente conseguiu, o estado vem e tira.
Gustavo Pontes comprou um apartamento na Avenida Rio Branco em 2021
O condomínio onde mora a servidora Daniele Fortunatto, 47, aprovou uma grande reforma antes da notícia da desapropriação —uma dívida que só será quitada em 2028. Ela diz que a notícia deixou moradores sem dormir direito e sofrendo com o desgaste emocional pela falta de perspectiva.
Temos raízes. Eu moro aqui desde 1984. É onde estudei, tenho família e trabalho. Eu também quero a revitalização e modernização do centro, mas porque o governo não ocupa os prédios que já são públicos? Não precisa tirar as pessoas daqui.
Daniele Fortunatto
Advogado diz que barrar desapropriação na Justiça seria muito difícil. "Não vejo sucesso em uma medida para barrar o projeto. É muito difícil discutir se há ou não interesse público na transferência dos prédios administrativos para o centro. Como existe um problema social muito sério, é fácil para o governo justificar a utilidade pública", afirmou Alex Lamartine, especialista em ações de desapropriação, que defende os moradores de dois prédios que serão demolidos.
No início, os moradores tinham mais esperança que a desapropriação não fosse concretizada. Hoje estão mais conscientes que o interesse do governo é manter a obra.
Alex Lamartine, da Lamartine Franco Sociedade de Advogados
Laudos da CDHU estimam que R$ 509 milhões serão gastos para a desapropriação de todos os imóveis. O governo deve conceder à iniciativa privada o contrato de concessão de exploração da área. Um leilão será feito para definir a empresa, que fica responsável por pagar as indenizações.
Governo afirmou em nota ao UOL que disponibilizou atendimento aos moradores e comerciantes da região em abril de 2024, um mês após o anúncio do plano. "Adicionalmente, desde o lançamento da consulta pública estão ocorrendo conversas com lideranças locais, membros de conselhos e sociedade civil organizada para esclarecimentos sobre o projeto. Toda documentação da consulta pública está disponível desde 24 de janeiro para acesso à todas as pessoas interessadas, no site da Secretaria de Parcerias em Investimentos". (veja abaixo a nota na íntegra)
Especialista diz que comunicação e atitude do governo "estão longe do ideal". Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil, diz que a divulgação da consulta pública e o acesso às informações do projeto foram precárias. "É um absurdo que as pessoas não tenham sido informadas pelo próprio poder público. Um projeto que envolve a remoção de pessoas tem que ser mais participativo e menos de cima para baixo".
Marina sugere que o governo divulgue um resumo do contrato, que tem 259 páginas, e faça uma comunicação direcionada à população afetada, explicando o que vai acontecer com os imóveis e as vantagens do plano. "A comunicação de hoje cumpre a legislação, mas não é transparente. O ônus de buscar participação popular não pode ficar na mão do cidadão".
No último dia 6, um pequeno grupo de proprietários foi convidado para a primeira reunião com representantes do governo desde que o projeto foi anunciado. O que eles ouviram foi que o valor da indenização será suficiente para comprar um apartamento com metragem similar no centro. Alguns imóveis na região têm mais de 80 m².
A expectativa é que as obras sejam concluídas em 2029 após investimentos de R$ 4,7 bilhões. Serão construídos 12 novos prédios para receber cerca de 22 mil funcionários.
O plano do governo também inclui mudanças no Terminal Princesa Isabel, que atende milhares de passageiros por dia. "A construção de um novo terminal está prevista como etapa obrigatória antes das intervenções, assegurando continuidade no transporte público. O novo terminal ficará na Avenida Casper Líbero, ao lado da entrada para a estação Luz de Metrô e CPTM. Além disso, para manter a acessibilidade ao Hospital da Mulher e outros serviços na região, será instalado um ponto de ônibus próximo ao local, mantendo assim o itinerário dos ônibus com embarque e desembarque no local", diz nota do governo.
Especialistas questionam projeto
Urbanista diz que proposta do governo de SP para reocupar o centro é uma mentira. Raquel Rolnik diz que 27 dos 54 órgãos que seriam transferidos para o complexo de Campos Elíseos já estão no centro da cidade, a maioria nos distritos da Sé e República. O dado é de um levantamento do LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
O Palácio do Morumbi só tem seis órgãos. A ida do governo para Campos Elíseos não se sustenta porque a maior parte das instituições, secretarias e órgãos estão na área do Triângulo Histórico [no centro]. O projeto como está sendo anunciado só vai esvaziar mais 27 prédios do centro.
O centro está cheio de prédios vazios e subutilizados que precisam de investimento. Quer mudar? Muda amanhã. Não precisa destruir quarteirões e tirar quase mil pessoas.
Raquel Rolnik, urbanista e coordenadora do LabCidade
Ela acredita que o governo lançou o projeto para abrir uma frente de expansão imobiliária. "A região de Campos Elíseos e Santa Efigênia não tem sido objeto de renovação e transformação porque tem milhões de dificuldades. É uma área antiga, com muitos tombamentos, difícil de achar os proprietários, o que atrapalha a incorporação imobiliária", afirmou Raquel. "A solução é destruir tudo para o mercado entrar. É uma valorização na marra".
Gabinete e residência do governador Tarcísio devem continuar no Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, afirmou o secretário de Desenvolvimento, Guilherme Afif, em março de 2024. O UOL tentou uma entrevista com o secretário, mas a assessoria de imprensa informou que ele está sem agenda.
Pesquisadora diz que governo Tarcísio violou o Plano Diretor, uma lei municipal que orienta o planejamento urbano. Isso porque o projeto desconsidera que alguns quarteirões estão em áreas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), que obriga a criação de um conselho eleito por moradores para opinar no projeto. "O Plano Diretor prevê a participação dos representantes desde a formulação do projeto. As audiências e a consulta pública online foram lançadas após a definição do projeto, sem qualquer participação da sociedade", criticou Débora Ungaretti, do LabCidade. "Esse projeto deveria ser suspenso até que fosse realizada uma ampla discussão pública sobre sua necessidade e o que é mais adequado para Campos Elíseos".
As pessoas gostariam de ver melhorias no bairro, gostariam de ter a sensação de segurança em seu cotidiano, mas a segurança que está sendo proposta neste projeto é baseada em um apartheid social, que promove a expulsão de parte da população para garantir a segurança de outra parte.
Débora Ungaretti, pesquisadora do LabCidade
Moradores devem ser desapropriados até 2027. O governo fala em 600 famílias, e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) estima que cerca de 800 pessoas moram nos quarteirões que serão demolidos, segundo dados do Censo de 2022.
Veja a nota do governo de São Paulo na íntegra:
"Desde abril de 2024 o Estado de São Paulo, por meio da CDHU, disponibilizou atendimento aos moradores e comerciantes da região para explicações sobre processo de desapropriação e avaliação de imóveis, indenizações, programas habitacionais, entre outras dúvidas referentes ao impacto do projeto. Tal serviço foi devidamente comunicado aos impactados e lideranças da região.
Adicionalmente, desde o lançamento da consulta pública estão ocorrendo conversas com lideranças locais, membros de conselhos e sociedade civil organizada para esclarecimentos sobre o projeto. Toda documentação da consulta pública está disponível desde 24 de janeiro para acesso à todas as pessoas interessadas, no site da Secretaria de Parcerias em Investimentos, bem como as datas das audiências. O lançamento da consulta foi divulgado de diversas formas nas redes sociais do governo e de autoridades, e também na mídia em geral.
Vale salientar que o processo de desapropriação e reassentamento está previsto para iniciar somente em 2026, quando do início dos trabalhos pelo concessionário da PPP do Centro Administrativo - onde este terá obrigações de atendimento, avaliação de impactos, pessoas e comunidades afetadas, bem como a devida provisão de reassentamento digno para a população na região central. Os valores de desapropriações previstos estão mensurados de maneira que os proprietários dos imóveis possam encontrar na mesma região imóveis semelhantes para mudar."