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Trajeto com 113 pontos e 3h20: a viagem de ônibus mais longa de São Paulo

do UOL

Do UOL, em São Paulo

16/02/2025 05h30Atualizada em 17/02/2025 07h13

Passando por ruas estreitas e pelas largas seis faixas de uma rodovia estadual, o ônibus 477P-10 - Ipiranga/Rio Pequeno faz a maior viagem do transporte público dentro da cidade de São Paulo.

Ao lado do motorista e do cobrador, as duas únicas pessoas que fazem a viagem completa, o UOL embarcou no trecho de ida dessa viagem, que faz quase 40 quilômetros entre curvas e linhas retas na cidade de São Paulo.

Sobre o 477P-10

A linha sai do bairro do Cursino, na zona sul de São Paulo, e vai até o Rio Pequeno, na zona oeste da cidade. Com 113 pontos no trecho de ida e 103 no de volta, ela passa na frente de sete estações de metrô por 18 bairros diferentes, entre áreas residenciais e empresariais.

Trajeto de ida e volta tem 78,3 quilômetros e ultrapassa a distância entre as duas pontas extremas da cidade de São Paulo. Se colocássemos uma linha reta entre o final do bairro de Marsilac, no extremo-sul, e o final do bairro do Tremembé, no extremo norte, teríamos 75 km, três a menos do que o feito pelo coletivo em uma viagem de ida e volta.

Mapa da SPTrans mostra trajeto de um dos sentidos da linha 477P-10; somadas, ida e volta completam 78,3 km, distância maior do que a das duas pontas extremas da cidade - SPTrans - SPTrans
Mapa da SPTrans mostra trajeto de um dos sentidos da linha 477P-10; somadas, ida e volta completam 78,3 km, distância maior do que a das duas pontas extremas da cidade
Imagem: SPTrans

A viagem feita pelo UOL começou às 9h15 e acabou às 12h35, durando 3h20. Em horário de pico no turno da tarde, segundo previsões do site da SPTrans, as viagens de ida e volta somadas duram 404 minutos (mais de 6h30).

Como embarcamos em horário de menor movimento e em um ônibus com ar condicionado, o caminho foi confortável. Ainda assim, a viagem parecia não ter fim. Após duas horas no trânsito, o ônibus estava a quase 40 pontos da parada final. Nas 3h20 em que fizemos a viagem, poderíamos ir de avião de São Paulo a Belém, ir de carro de São Paulo a Ubatuba ou fazer uma viagem e meia de trem de Jundiaí a Rio Grande da Serra.

Ao todo, 21 ônibus fazem a linha diariamente, segundo a SPTrans. Dados da Secretaria de Mobilidade Urbana e Transporte de São Paulo apontam que 128 viagens por dia são feitas em dias úteis e, em média, 12 mil passageiros são transportados pela linha.

Uma viagem de contrastes

Ao longo de 3h20 de viagem da linha 477P-10, é possível ver a paisagem de São Paulo mudar da janela do ônibus  - Lorena Barros/UOL - Lorena Barros/UOL
Ao longo de 3h20 de viagem da linha 477P-10, é possível ver a paisagem de São Paulo mudar da janela do ônibus
Imagem: Lorena Barros/UOL

Apesar de só atravessar um pedaço de São Paulo, a vista da janela do 477P-10 mostra pontos extremos da cidade ao longo do seu trajeto. Por longos minutos, passamos entre casarões da zona sul. Em outro trecho, é possível ver lojas de atacado, descampados e até um motel às margens da Raposo Tavares.

Viagem passa pelo 2º bairro mais rico da cidade e acaba no 18º mais pobre. O Rio Pequeno, onde fica o ponto final da linha, está em 78º lugar no ranking de remuneração de trabalhadores com empregos formais em São Paulo. Com salário médio de R$ 2,7 mil, ele fica na parte de baixo de uma lista que conta com 96 bairros. No meio da viagem, o Itaim Bibi tem a 2ª melhor renda de toda a cidade, com média salarial de R$ 8,4 mil, segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa SP.

A variação de renda entre os bairros se reflete nas paisagens. Ao passar na avenida Faria Lima, um dos centros comerciais de São Paulo, é possível ver os prédios espelhados, os patinetes elétricos e pessoas de roupa social caminhando pela rua. Quando cruzamos o rio Pinheiros e nos afastamos das áreas centrais, são revelados pontos ainda não tocados pela especulação imobiliária, com casinhas e comércios de bairro.

Após passar por Sacomã, Ipiranga, Saúde, Brooklin, Itaim Bibi, Vila Olímpia e Butantã, a viagem termina atrás de uma unidade de pronto atendimento no Rio Pequeno. O ponto final tem os mesmos ares de simplicidade do bairro, com mercados e pequenos comércios característicos de uma periferia paulista.

Há 28 anos na linha, motorista viu São Paulo se transformar

Gileuson Coelho, 49, dirige a linha mais longa de ônibus de São Paulo há 28 anos - Lorena Barros/UOL - Lorena Barros/UOL
Gileuson Coelho, 49, dirige a linha mais longa de ônibus de São Paulo há 28 anos
Imagem: Lorena Barros/UOL

Gileuson Coelho, 49, passou mais da metade da vida sendo motorista do 477P-10. Nascido no sertão da Paraíba e criado em São Paulo desde os dois anos, fez bicos e foi sapateiro antes de entrar na Via Sudeste, onde trabalha até hoje. Na empresa, ele dirigiu outras linhas, mas "se apaixonou" pelo trecho mais longo da cidade desde que o conheceu, em 1997.

Iniciando seu expediente sempre às 5h, ele faz três trechos por dia (vai até Rio Pequeno duas vezes e volta ao ponto inicial uma), seis dias por semana. Ao UOL, Gil, como é chamado pelos seus passageiros frequentes, conta que sentiu estranheza até se acostumar aos 78 quilômetros de ida e volta.

Quando comecei nessa linha senti muita diferença pela distância. Era muito longe. Parecia que não ia chegar mais no ponto final, de tão longe que era.
Gileuson Coelho, motorista da linha 477P-10, ao UOL

Corpo se acostumou à viagem e ele garante que nunca teve "emergências". Durante algumas paradas nos semáforos ou em congestionamentos, ele aproveita para se hidratar, mas, segundo ele, nunca precisou pausar a viagem para ir ao banheiro. Ao chegar ao ponto final, estica as pernas, vai ao banheiro e se alimenta. Ele costuma fazer intervalos longos entre uma viagem e outra. No dia em que nos guiou pela cidade, parou para almoçar quando chegou no ponto final.

Placa sinaliza 73 ruas por onde ônibus 477P-10 passa em um dos seus sentidos; ao todo, linha para em 113 na ida até o Rio Pequeno e em 102 na volta até o Ipiranga - Lorena Barros/UOL - Lorena Barros/UOL
Placa sinaliza 73 ruas por onde ônibus 477P-10 passa em um dos seus sentidos; ao todo, linha para em 113 na ida até o Rio Pequeno e em 102 na volta até o Ipiranga
Imagem: Lorena Barros/UOL

Por trás do volante, ele viu boa parte dos prédios da Faria Lima serem erguidos. Ele conta que o local é o que mais mudou desde que começou a trabalhar na linha. Outros dois bairros que passaram por grande mudança nessas quase três décadas foram o Brooklin e o Itaim Bibi. Passando por essas regiões, é possível ver que a mudança ainda continua, com caminhões de obra e andaimes cortando a linha do horizonte.

No ponto de vista do motorista, duas avenidas são as mais complicadas no trajeto. Para Gil, a rodovia Raposo Tavares, quase no final da viagem, e a avenida Brigadeiro Faria Lima, centro comercial da cidade, são os pontos mais imprevisíveis, com maior número de congestionamentos e intercorrências.

Para alguém que dirige mais de 600 quilômetros por semana, Gil aparenta tranquilidade nas tarefas do trabalho. Ele diz que seu maior foco é fazer sempre a viagem em paz e descarta totalmente a ideia de mudar de linha.

A melhor parte é sair em paz e chegar em paz. Isso para mim é gratificante. Eu amo essa linha, se estou aqui até hoje é porque gosto.
Gileuson Coelho, motorista da linha 477P-10, ao UOL

Ao longo dos anos em que transportou milhares de passageiros entre Ipiranga e Rio Pequeno, o motorista casou e teve dois filhos. Acordando às 3h20 e saindo do serviço às 16h todos os dias, ele conta que chegar em casa e ver a família após um dia de trabalho é uma das suas maiores recompensas.

Quem são os passageiros

É consenso que fazer toda a viagem de ida da linha 477P-10 não é vantajoso para ninguém, já que há formas mais práticas e rápidas de chegar da zona sul à zona oeste de transporte público. Ao longo dos quase 40 quilômetros de trajeto de ida, a "população" de passageiros é renovada totalmente pelo menos três vezes.

No começo da viagem, encontramos muitas pessoas se dirigindo ao trabalho. A maioria delas pega o ônibus na região do Ipiranga, ou na frente de alguma estação da linha 1-Azul do metrô para seguir até o Brooklin ou Itaim Bibi.

Bárbara Silva mora perto de um dos primeiros pontos de ônibus da linha 477P-10, mas prefere pegar o metrô e encontrar a linha 'no meio do caminho', economizando tempo - Lorena Barros/UOL - Lorena Barros/UOL
Bárbara Silva mora perto de um dos primeiros pontos de ônibus da linha 477P-10, mas prefere pegar o metrô e encontrar a linha 'no meio do caminho', economizando tempo
Imagem: Lorena Barros/UOL

A recepcionista Bárbara Silva, 27, é uma dessas pessoas. Ela sobe no ônibus na frente da estação Saúde e desce no bairro do Brooklin. A depender do trânsito, fica até três horas por dia no veículo, contando o tempo de ida e volta.

Esse ônibus passa perto da minha casa, mas como a linha é muito longa, eu prefiro pegar o metrô e pegar esse ônibus na estação Saúde. Para ir, são quase duas horas. Para voltar é um pouco mais tranquilo, porque não pego horário de pico.
Bárbara Silva, passageira do 477P-10, ao UOL

Embarcando em um dos primeiros pontos, Edyr Emídio, 75, também usa o transporte para ir até o trabalho. Ela desce na região da Saúde, bairro onde trabalha em um escritório, e se queixa da imprevisibilidade da linha no horário em que volta para casa. "Às vezes o ônibus avisa no aplicativo que vai chegar em uma hora determinada e nunca chega", afirma.

Acidentes e obras no caminho costumam ser o fator de atraso para o ônibus chegar em alguns pontos. No dia em que o UOL embarcou na linha, a previsão inicial era de que fizéssemos a viagem em cerca de 2h40. Um grande congestionamento na região da avenida Indianópolis, porém, atrasou nosso trajeto em 40 minutos.

No meio do caminho, boa parte dos passageiros entra no ônibus para uma viagem de poucos minutos, sem se importar com o destino. É comum que eles perguntem ao motorista e ao cobrador se a linha passa perto do shopping Iguatemi (sim, passa) ou pela Faria Lima (sim, entra).

Roney Duarte, 25, é estudante de medicina e desce em um dos últimos pontos do ônibus 477P-10, no sentido Rio Pequeno; ele pega a linha com frequência para voltar da universidade - Lorena Barros/UOL - Lorena Barros/UOL
Roney Duarte, 25, é estudante de medicina e desce em um dos últimos pontos do ônibus 477P-10, no sentido Rio Pequeno; ele pega a linha com frequência para voltar da universidade
Imagem: Lorena Barros/UOL

Neste trecho da viagem, muitos têm pressa e dizem não conhecer sobre o caminho e sobre a linha. "Vou descer daqui a pouco, prefiro não conversar", diz uma das passageiras, que não se identificou, ao UOL. A pressa combina com dados do Mapa de Desigualdade de São Paulo, que mostram que o bairro de Pinheiros, por onde passa a avenida Faria Lima, tem o menor tempo médio de deslocamento por transporte público na cidade, com cerca de 25 minutos.

Quando a linha passa pela região do Butantã, na zona oeste de São Paulo, entramos no "trecho final" do nosso passeio. A parada que fica ao lado da estação da linha 4-Amarela do metrô foi um dos pontos com o maior número de pessoas embarcando. Perto da hora do almoço, a maioria deles volta da escola ou da universidade para casa.

O aluno de medicina Roney Duarte, 25, é um dos que desce mais perto do ponto final durante a nossa viagem. Ele sai do Butantã e segue até a Vila Esperança, último bairro antes do Rio Pequeno. Para ele, assim como para o motorista, o trecho da Raposo Tavares é um dos mais delicados, com congestionamentos constantes.

Fazendo o mesmo caminho há três anos, Roney já costuma assistir a vídeos ou ouvir podcasts durante a viagem. Ele termina a faculdade em um ano e, ao se formar, não deve continuar sendo um frequentador assíduo da linha.

Este é meu último ano de faculdade e, provavelmente, depois disso eu vou parar de pegar ônibus. Hoje saí mais cedo, mas geralmente esse ônibus é bem lotado, principalmente de manhã.
Roney Duarte, estudante de medicina

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