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Canetadas de Trump extrapolam 'superpoderes' e começam a parar na Justiça

Trump assina "ordens executivas" no Salão Oval após tomar posse - Carlos Barria/REUTERS
Trump assina "ordens executivas" no Salão Oval após tomar posse Imagem: Carlos Barria/REUTERS
do UOL

Do UOL, em São Paulo

08/02/2025 05h30

Depois do revogaço de 78 medidas do antecessor Joe Biden já no dia da posse, o presidente americano Donald Trump ensaiou os primeiros recuos na economia. Embora conte com maioria no Congresso e na Suprema Corte e ainda tenha garantido para si superpoderes ao declarar "emergência nacional", ele terá dificuldade para emplacar tudo o que vem prometendo. Trump já começa a enfrentar contestações na Justiça e terá de lidar com inimigos internacionais que ele vem criando com sua controversa tentativa de redefinir o poder dos Estados Unidos no mundo.

O que aconteceu

"Promessas feitas, promessas cumpridas", declarou o republicano em seu primeiro discurso após vencer a eleição do ano passado. Assim que vestiu o figurino de presidente, no último dia 20, Trump distribuiu canetadas para cumprir suas promessas, como a que retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris e acabou com regras contra discriminação sexual.

Essas decisões unilaterais são conhecidas nos EUA como "ordens executivas". Elas equivalem ao decreto presidencial no Brasil: um ato administrativo, sem a participação do Congresso, em que o presidente organiza o serviço público, orientando, por exemplo, como as agências federais devem gastar seu dinheiro. Quando extrapolam suas atribuições, porém, essas ordens podem acabar atropeladas por leis aprovadas no Congresso ou contestadas na Justiça.

Uma dessas canetadas foi barrada por uma juíza federal na semana passada. Ela suspendeu uma ordem de Trump para congelar bilhões de dólares em ajudas financeiras, como socorro a desastres, compra de merenda escolar e empréstimos a pequenas empresas. Após o despacho da magistrada, a Casa Branca revogou a ordem.

Trump, no entanto, tem um trunfo: no dia da posse, ele declarou emergência nacional. A medida lhe dá dinheiro e poderes extras para tomar decisões sem o Parlamento. "Ao declarar emergência tanto na fronteira quanto em saúde, ele passa a ter prerrogativas mais amplas de atuação inclusive na economia, quando houver alguma relação", explica a professora de Relações Internacionais da ESPM Denilde Holzhacker. "Ele justificou a sobretaxa sobre México, Canadá e China ao relacionar a economia aos problemas de fronteira e segurança." O republicano só adiou a taxação sobre Canadá e México depois que eles concordaram em aumentar a vigilância das fronteiras, por onde passariam imigrantes e drogas.

Trump sabe que tem os 100 primeiros dias de governo para grandes medidas de impacto, que é quando a sociedade tem uma visão mais positiva sobre o governo.
Denilde Holzhacker, professora

Dobrar Congresso não será fácil

Trump terá de recorrer ao Legislativo quando não conseguir se virar sozinho. Mesmo com maioria republicana no Congresso, a tarefa não será fácil, já que a vantagem é pequena: duas cadeiras na Câmara e três no Senado. Na primeira metade de seu primeiro governo, Trump tinha maioria ainda maior nas duas Casas, mas a única lei econômica importante que emplacou foi uma redução de impostos. "É muito fácil ele perder essa maioria: basta que poucos republicanos votem com os democratas para frustrá-lo", diz Paulo Feldmann, professor da FIA Business School.

congresso americano - Saul Loeb - 30.jan.2018/AFP - Saul Loeb - 30.jan.2018/AFP
Arquivo - Trump discursa no Congresso americano durante o primeiro mandato
Imagem: Saul Loeb - 30.jan.2018/AFP

Se não bastasse, até republicanos podem resistir em mudar algumas leis de Biden. Trump quer derrubar, por exemplo, a Lei de Redução da Inflação, que injetou US$ 400 bilhões em projetos de energia renovável que beneficiaram principalmente estados administrados por republicanos: cerca de 60% dos projetos foram anunciados em estados administrado por eles, que receberam 85% dos recursos e geraram mais de 100 mil empregos, inclusive com a instalação de fábricas de carros elétricos, um dos alvos de Trump.

Nem mesmo a maioria conservadora na Suprema Corte é garantia de vida fácil ao presidente. Como muitas de suas decisões podem acabar no tribunal máximo dos EUA, Trump espera alinhamento dos seis ministros indicados por republicanos (democratas indicaram três). Já nessa configuração, a mais alta corte do país ignorou pedido de Trump para anular as eleições presidenciais de 2020 e barrou sua tentativa de acabar com um programa de proteção a imigrantes menores de idade que chegaram ao país sem documentos.

Além disso, 60% dos juízes dos tribunais distritais foram nomeados por democratas. Há duas semanas, um juiz federal bloqueou temporariamente a ordem executiva de Trump que retirava a cidadania de filhos de imigrantes ilegais nascidos nos Estados Unidos.

Muitas leis estaduais e municipais se sobrepõem às decisões de Trump, e os governos progressistas vão acionar a Justiça, que fará uma análise sobre o quanto as decisões presidenciais violam leis já implementadas em outros níveis.
Denilde Holzhacker, professora

Trump pode tomar a Palestina?

Outra proposta polêmica de Trump é assumir o controle sobre a Faixa de Gaza. A proposta seria ocupar o território, retirar os palestinos e transformar a região num destino turístico. "Seremos os donos dela e responsáveis pelo desmantelamento de todas as bombas não detonadas", disse ele na quarta-feira (5). No dia seguinte, o governo de Israel ordenou que o exército preparasse um plano para a saída voluntária dos moradores da Faixa de Gaza.

Embora não se trate de uma declaração de guerra, Trump precisaria do aval do Congresso. Segundo o Serviço de Pesquisa do Congresso —o informativo do Capitólio—, "qualquer alteração no status político territorial [americano], incluindo a admissão de um estado, exigiria a aprovação do Congresso". O presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson, defendeu a ideia de Trump como medida para "garantir a paz na região".

"Tem que ter autorização do Congresso para qualquer intervenção em outro país", reforça Holzhacker. Se o trabalho de retirar os palestinos contar apenas com o exército israelense, porém, Trump poderia usar esse argumento para driblar o aval do Parlamento. "Mas se tiver o envio de tropas americanas, precisa da autorização do Congresso, mesmo com o ato de emergência, porque é uma intervenção externa e não uma ação interna nos Estados Unidos."

O que Trump já fez na economia?

Já no primeiro dia de trabalho, Trump mexeu na organização do funcionalismo. Ele congelou as contratações do governo federal e exigiu que os servidores voltassem a trabalhar presencialmente.

O presidente criou um órgão para "desmantelar a burocracia". Entregue ao empresário Elon Musk, o Departamento de Eficiência Governamental deverá "cortar regulamentos excessivos, eliminar gastos desnecessários e reestruturar agências federais". Musk já declarou sua intenção de "reduzir as agências governamentais", como a Comissão Federal de Comércio, o Serviço de Receita Interna e a Comissão de Valores Mobiliários. O bilionário estima cortar "pelo menos US$ 2 trilhões" (R$ 11 trilhões) do orçamento federal.

Uma das missões de Musk será dispensar servidores. O governo propôs uma indenização de oito meses de salário aos funcionários federais que entregarem seus cargos. "Estimamos que de 5% a 10% dos funcionários vão pedir demissão, gerando uma economia de cerca de US$ 100 bilhões (R$ 580 bilhões)", afirmou.

Trump pediu às agências federais um pente fino nas práticas comerciais dos EUA. Ele quer saber, por exemplo, onde há déficits, se há produtos falsificados entrando no mercado americano e se produtos de baixo valor estão sendo importados com isenção de impostos.

Trump declarou emergência energética nacional. Assim, ele pode acelerar a construção de oleodutos, revertendo, por exemplo, a ordem executiva de Biden que desautorizou a exploração de petróleo no Alasca. "Desbloquear essa abundância de riqueza natural [no estado] aumentará a prosperidade de nossos cidadãos, ao mesmo tempo em que ajudará a melhorar a segurança econômica", disse.

Quando não conseguir revogar leis ambientais, Trump poderá atrapalhar sua implementação. Ele deve interferir, por exemplo, no funcionamento do Departamento de Energia do Loan Program Office, responsável por fomentar a indústria de energia limpa. O republicano também vai tentar aprovar no Parlamento o corte de impostos à indústria do petróleo.

Trump prometeu cortar os preços da energia em 50% ao incentivar a produção de combustíveis fósseis. Mesmo estimulando essa produção, o presidente terá dificuldade em cumprir essa promessa porque os preços são definidos pelo mercado internacional.

O governo também pretende criar um "Serviço de Receita Externa". A agência, cuja criação precisa passar pelo Congresso, serviria para recolher tarifas e outras receitas de países estrangeiros, embora o Departamento de Comércio já desempenhe essa função. "Começaremos a cobrar aqueles que ganham dinheiro conosco com o comércio", disse Trump na Truth, sua rede social.

A medida com maior repercussão até o momento foi a criação da política de comércio "América Primeiro". Ela permite a implantação de tarifas contra outros países, como aquelas sobre México, Canadá e China —que depois de sobretaxada em 10% respondeu sobretaxando parte das exportações americanas.

O que perdem os EUA?

Porto de Nova Yorque, nos Estados Unidos; sobretaxa sobre produtos estrangeiros deve aumentar a inflação nos EUA  - Reprodução/Port of New York - Reprodução/Port of New York
Porto de Nova Yorque, nos Estados Unidos; sobretaxa sobre produtos estrangeiros deve aumentar a inflação nos EUA
Imagem: Reprodução/Port of New York

Taxar produtos estrangeiros vai aumentar a inflação, provocando a reação de empresários locais. "A supertaxação aos produtos de fora vai encarecer os produtos nos Estados Unidos, aumentando os preços internos", diz Feldmann. "Haverá mobilização dos setores produtivos", completa Holzhacker. "Associações de empresas americanas já se posicionaram contra essa guerra tarifária porque vai aumentar seus custos. Se isso acontecer, esses grupos vão pressionar o Legislativo ou vão recorrer à Justiça."

A deportação de imigrantes também é um risco para a economia americana. "Eles são uma mão de obra muito barata utilizada em atividades que o americano não vai querer assumir porque não trabalha por um salário tão baixo", diz Feldmann.

As ameaças de Trump são uma característica dele como empresário. Faz ameaças muito sérias para que o outro recue, e aí ele muda de ideia. É provável que muitas dessas ameaças não deem em nada.
Paulo Feldmann, professor

Brasil na mira?

O presidente Lla (PT) em entrevista coletiva no palácio do planalto - Ricardo Stuckert/PR - Ricardo Stuckert/PR
30.01.25 - O presidente Lula mandou avisar que vai sobretaxar produtos americanos se Trump fizer o mesmo com o Brasil
Imagem: Ricardo Stuckert/PR

Para os especialistas, o Brasil está fora do radar por enquanto. "Trump está focando nos países contra quem é deficitário. Eles têm superávit com o Brasil, então podemos não entrar na primeira leva", diz a professora. No ano passado, as exportações brasileiras para os EUA chegaram US$ 40,3 bilhões contra US$ 40,6 bilhões importados em produtos norte-americanos.

O Brasil só foi mencionado por Trump em ameaças ao Brics, acrônimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O grupo econômico —agora com Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos— pretende trocar o dólar por moedas locais nas transações comerciais entre eles, o que Trump não admite. "Acho que o Trump não vai querer essa briga porque ele tem aliados importantes no Brics, como o Brasil e a Índia. Retaliar o bloco pode fortalecer a aliança desses países com a China, o grande rival americano", diz o professor.

Ainda assim, os Estados Unidos devem criar novas inimizades ao redor do mundo. "Trump está permitindo a formação de uma aliança contra os EUA. O mundo está se mexendo porque os países afetados não vão abaixar a cabeça", diz Feldmann. A professora concorda. "Os países que se sentem ameaçados vão buscar alternativas, fortalecendo, inclusive, a China", diz. "É uma estratégia muito controversa de redefinição do poder americano."

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