Militares mantêm benefícios mesmo gerando rombo de R$ 50 bi na Previdência
O governo Lula deixou praticamente intocados benefícios das Forças Armadas no pacote para conter gastos públicos, apesar de a aposentadoria militar responder por um rombo de R$ 50 bilhões e ser, proporcionalmente, o maior déficit da Previdência.
O que aconteceu
Privilégios das Forças Armadas foram alvo de críticas após divulgação de vídeo da Marinha. A peça institucional intercala imagens de oficiais de baixa patente em treinamento militar com a de cidadãos civis em momentos de lazer. O vídeo termina com a pergunta: "Privilégios?". A peça foi ajustada de última hora para reagir à inclusão militar nos cortes do governo, apurou a colunista do UOL Raquel Landim.
No fim das contas, a proposta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mexe pouco nos benefícios das Forças Armadas. Elas devem contribuir com R$ 2 bilhões dos R$ 70 bilhões que serão economizados em dois anos. O ajuste atinge apenas três pontos:
- Fim do pagamento da pensão para os "mortos fictícios" (morte ficta). Até hoje, familiares de militares expulsos das Forças por crimes ou infrações recebem pensão. A Folha revelou que, só no Exército, o pagamento ultrapassa R$ 20 milhões por ano.
- Fim da transferência de pensão para dependentes. Depois de usufruída por cônjuges e filhos, a pensão pode ser transferida a parentes mais afastados, como irmãos, em caso de morte de familiar mais próximo.
- Pagamento de 3,5% da remuneração militar para o fundo de saúde militar. O percentual, que podia ser menor dependendo da patente, precisará ser pago igualmente por todos.
Idade mínima para entrar na reserva. Se o pacote de Haddad for aprovado, os militares precisarão ter 55 anos para entrar na reserva com salário integral, mas com um prazo de transição até 2032.
Especialista vê mudanças "muito tímidas". "Mesmo a questão da morte ficta, que é moralizante, me parece uma nuvem de poeira", afirma o economista Pedro Fernando Nery, professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino).
O impacto é quase irrelevante, já que pouca gente é expulsa da Forças (...) Mas passa a impressão de que cederam, de que excessos estão sendo corrigidos. Não estão.
Pedro Fernando Nery, economista
Os benefícios dos militares
Além dos benefícios que serão alvo do ajuste, há outros. Eles envolvem sobretudo acúmulo de adicionais ao salário militar e a manutenção do soldo após a ida para a reserva, ou aposentadoria. Além do soldo, a remuneração dos militares é composta por adicionais de:
- Compensação por disponibilidade militar: varia de 5% a 41% a depender da patente, e se refere à dedicação exclusiva ao serviço militar e à necessidade de sempre precisar estar disponível.
- Compensação orgânica: compensa o desgaste físico de algumas atividades militares, como mergulho e salto de paraquedas. Varia de 10% a 20%, dependendo da patente.
- Permanência: o militar que pode ir para a reserva e escolhe continuar em atividade recebe mais 5% do soldo e mais 5% a cada promoção.
- Habilitação: para receber, o militar precisa realizar curso de especialização. Conforme o número e o tipo, maior é o percentual repassado, que variava de 12% a 30% do soldo, passou de 12% a 76% após a Reforma da Previdência Militar de 2019.
- Militar: a medida provisória que o regulamentou, em 2001, diz apenas que o valor se refere a uma "parcela remuneratória mensal devida ao militar, inerente a cada círculo hierárquico da carreira". Varia de 13% a 28% sobre o soldo. Ganha mais quem tem patente maior.
Esses adicionais mais do que dobram os salários no topo da hierarquia militar. O soldo para o general do Exército, tenente-brigadeiro do ar ou almirante de esquadra é de R$ 13,4 mil, mas pode chegar a R$ 28,3 mil com os aditivos.
Os adicionais causam rombo no sistema previdenciário. Diferentemente de servidores civis e trabalhadores da iniciativa privada, que em geral recebem aposentadoria proporcional à média dos salários ao longo da carreira, os militares vão para a reserva ganhado integralmente seu último soldo, acrescido dos adicionais a que tinham direito.
Reforma em 2003 acabou com a integralidade para servidores civis. "Ela ainda existe para os que entraram no serviço público até 2003, mas, depois dessa data, o cálculo foi ficando proporcional", afirma Nery. "Para o INSS, não existe nada parecido. O ideal ia ser fazer agora algo parecido: quem já entrou antes da mudança segue com o direito, e muda daqui para frente. Gradualmente, o déficit diminui."
Os militares se aposentam cedo e, na reserva, recebem os mesmos reajustes concedidos aos da ativa. Até que a proposta de Haddad seja aprovada pelo Congresso, o militar não tem idade mínima para se aposentar. Ele vai para a reserva com o salário integral, se tiver servido por 35 anos. O ajuste do governo prevê que o militar precisará ter 55 anos para se aposentar, mas só a partir de 2032. Hoje é comum militares se aposentarem na casa dos 40 anos.
Na iniciativa privada, é preciso cumprir regras de idade mínima e de anos de contribuição. As mulheres precisam atingir 30 anos de contribuição e 62 anos de idade mínima, e homens, 35 de contribuição e 65 de idade mínima.
Rombo de R$ 50 bilhões
O rombo previdenciário é a principal dor de cabeça das contas federais. Somados os déficits dos setores privado, público e militar, o rombo com aposentadoria ficou em torno de R$ 420 bilhões em 2023.
Proporcionalmente, o maior déficit é da previdência militar. Embora os R$ 49,7 bilhões de déficit da categoria equivalham a 11,6% do total, o rombo per capita é 16 vezes superior ao do INSS. Enquanto cada aposentado ou pensionista do INSS gera R$ 9.400 de déficit por pessoa ao ano e os servidores públicos civis geram rombo de R$ 69 mil, os militares têm déficit de R$ 159 mil por beneficiário, segundo relatório de junho do TCU (Tribunal de Contas da União), que alertou sobre os "privilégios" dos aposentados das Forças Armadas.
A arrecadação do setor militar não cobre quase nada das suas despesas. A do setor privado cobriu 65%, a dos servidores civis 41,9%, e "o sistema dos militares arrecadou apenas R$ 9,1 bi e gastou R$ 58,8 bi, perfazendo a extremamente pequena proporção de 15,47% da despesa que causa ao erário", comparou em julho o ministro do TCU Walton Alencar.
Dono do quinto maior orçamento da Esplanada, o orçamento do Ministério da Defesa é quase todo comprometido com salários. 78% de seus R$ 127,9 bilhões pagam o soldo dos 362.574 militares da ativa, 235.416 pensionistas e 169.793 inativos (aposentados), segundo o Portal da Transparência.
Proporcionalmente, a folha de pagamento dos militares brasileiros é três vezes a dos Estados Unidos, a maior potência militar do mundo. Por lá, os salários consomem 22% do orçamento militar, segundo dados da Peter G. Peterson Foundation, entidade que acompanha as contas públicas nos EUA.
"O militar recebe muito mais do que contribui", diz Nery. "E isso é particularmente verdade para a massa que se 'aposenta' mais cedo: os de patentes mais altas ficam até uns 60 anos trabalhando. Então, boa parte do custo [previdenciário] vem dos militares que não alcançam o topo da carreira, porque eles saem aos 40 e poucos anos e vão passar mais tempo 'aposentados' do que em atividade."
Outros benefícios
A classe ainda goza de outros benefícios:
- Estudo conta na aposentaria. Estudantes de órgãos de formação já são considerados militares da ativa. Desde o primeiro dia de aula, começam a receber salário, e o tempo de carreira para a aposentadoria passa a valer.
- Moradia. O militar tem direito a moradia na organização militar, quando aquartelado, ou casa sob a responsabilidade da União para ele e seus dependentes. São os condomínios ou vilas militares, normalmente perto do local de serviço. Os militares que utilizam as residências pagam taxas de permissão de uso e de manutenção, além das taxas condominiais.
- Auxílio funeral. A família do servidor civil que morre recebe o equivalente a um salário para cuidar do funeral. Para os militares, o valor é pago também em caso de falecimento de cônjuge e dependente. Além disso, o valor não poder ser inferior ao soldo de subtenente, que é R$ 6.169.
- Indenização para aposentar. A reforma aprovada no governo Bolsonaro aumentou de quatro para oito salários o benefício extra para o militar que se aposenta. A justificativa era que militares não recebem FGTS.
- Ajuda de custo para transferência de local de trabalho. O militar com dependentes recebe dois salários a cada mudança. Se o destino for um município com deslocamento difícil, o montante pode subir para quatro soldos. O valor cai pela metade se o militar não tiver filhos.
A última grande movimentação ocorreu em março. As mudanças atingiram 75 oficiais, incluindo 11 generais, que receberam, em média, R$ 100 mil cada, segundo reportagem da Folha de S.Paulo. Como o principal fator é o salário, a verba infla as remunerações no topo da carreira, em prejuízo de praças, por exemplo.
O UOL procurou o Ministério da Defesa, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. Os militares também têm alguns direitos restringidos: eles não têm direito de fazer greve, não recebem FGTS, se eleitos a cargo público passará para a inatividade e não recebem horas extras e adicional de periculosidade.