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Extrema direita negacionista pode crescer diante de catástrofes climáticas

Homem em meio às enchentes no Rio Grande do Sul em junho; tragédia não foi suficiente para derrubar a extrema direita - Diego Vara/Reuters
Homem em meio às enchentes no Rio Grande do Sul em junho; tragédia não foi suficiente para derrubar a extrema direita Imagem: Diego Vara/Reuters
do UOL

Rosana Pinheiro-Machado

Colunista convidada

30/09/2024 12h00Atualizada em 30/09/2024 15h24

Deixei o trabalho de campo em Porto Alegre no dia em que a enchente começou. Em meio ao desespero, amigos progressistas acreditavam que aquele seria o fim da legitimidade dos bolsonaristas. Afinal, quem votaria em negacionistas climáticos com o estado submerso? Entre meus interlocutores de pesquisa, porém, observei o oposto.

Passei, então, a me questionar: a extrema direita negacionista poderia realmente crescer diante dos desastres climáticos? Os perpetradores poderiam sair mais fortes?

Infelizmente, a resposta parece ser sim.

Na semana passada, as chuvas voltaram, tornando a cidade intransitável. Ao mesmo tempo, o bolsonarista Sebastião Melo — cuja gestão foi marcada por negligência antes, durante e após a enchente — lidera as pesquisas, com 36,5% de intenção de votos (contribui para isso, é claro, a ampla rejeição à petista Maria do Rosário).

A devastação no Rio Grande do Sul atingiu 96% do estado, desalojou meio milhão de pessoas e tirou 182 vidas. Foi nesse cenário que o extremismo cravou brechas para crescer — tema que eu e meus colegas, Tatiana Vargas-Maia e Fabrício Pontin, estamos desenvolvendo em um artigo.

O sul do Brasil emite um alerta sobre as consequências políticas dessas calamidades, como as queimadas que hoje devastam o país.

Extremistas se aproveitam de cenários apocalípticos para recrutar ou radicalizar membros. Porém, setores progressistas frequentemente subestimam o impacto catalisador desses eventos. Seria lógico que, após desastres ambientais, a população se voltasse contra os negacionistas. Mas, infelizmente, não é assim que as coisas funcionam.

Durante a enchente, acompanhei a circulação de informação nos grupos de WhatsApp dos meus interlocutores. Não eram grupos de política, mas de troca de experiências cotidianas entre motoristas de aplicativo ou vendedores. Nas conversas indignadas, identifiquei várias formas pelas quais o sentimento de rejeição à política institucional foi explorado e transformado em antissistema.

Ao contrário do que muitos possam imaginar, a vasta disseminação de fake news não foi o maior problema no contexto que pesquisava.

Um vídeo tentava induzir à crença que o prefeito petista de Canoas — cidade severamente atingida — havia agredido uma pessoa vulnerável em um abrigo. Outras notícias sugeriam que Lula estaria bloqueando recursos para dificultar a reconstrução. O PT era culpado de tudo. No entanto, quem compartilhava essas notícias já era antipetista e só as repassava para reforçar suas convicções. Outras pessoas respondiam com deboche ou fact-checking. Ninguém realmente acreditava nessas balelas.

Mais preocupante do que conteúdos forjados eram as verdades seletivas: as notícias verdadeiras que apresentam apenas parte da história, sendo usadas como armas em disputas narrativas, justamente por sua veracidade.

Um exemplo que impactou fortemente meus interlocutores foi o fato de que a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015, não levou adiante um estudo que previa os riscos de enchentes. Outro exemplo são vídeos de cientistas explicando as enchentes exclusivamente sob uma perspectiva geológica e geográfica. Simpatizantes bolsonaristas também compartilhavam imagens da enchente de 1941, que devastou a cidade.

Embora factualmente corretos, esses conteúdos eram usados para enfraquecer discussões sobre mudanças climáticas ou criticar o PT. Focar nas decisões de Rousseff ignora a administração antiambientalista de Bolsonaro. Enfatizar explicações geológicas deixa de lado o impacto do desmatamento nos estados do Norte sobre o aumento das chuvas no Sul.

Soluções individualistas tomam conta

Além das verdades seletivas, a desconfiança com a política institucional induz a soluções individualistas, que é o oposto da democracia. Influenciadores e políticos de extrema direita favoreciam medidas paternalistas em vez de ações estatais. Um exemplo é o político Marcel van Hattem (Novo), que elogiou o então coach Pablo Marçal por sua doação ao Rio Grande do Sul, destacando que Marçal teria oferecido mais apoio que qualquer iniciativa governamental.

Outros influenciadores afirmavam que tragédias como aquela eram oportunidades para transformação pessoal através da fé, do trabalho árduo e do eventual sucesso. "Essa pode ser a oportunidade da sua vida para ganhar seu primeiro milhão", declarou uma influenciadora de marketing digital enquanto fingia chorar em uma live.

Soluções individuais ganham força em um contexto onde trabalhadores de baixa renda perderam a confiança na capacidade do Estado. Meus interlocutores, em sua maioria autônomos, vivenciam negligência e extorsão por parte das autoridades locais, estaduais e federais. Para eles, Estado, governo e políticos são sinônimos de corrupção. Embora esse sentimento seja legítimo, o risco é que fomente uma visão antipolítica e antissistema, levando à identificação com populistas autoritários, que oferecem soluções simplistas por meio de uma retórica vaga, mas emocionalmente envolvente, que desperta conexão.

A solidariedade comunitária também foi manipulada para impulsionar uma agenda de desconfiança nas instituições. Em tempos de desastres, a resiliência comunitária, a ajuda mútua coletiva e a auto-gestão são fundamentais para o enfrentamento e a recuperação. A capacidade da população de se mobilizar e oferecer soluções às vítimas foi comovente. No entanto, em uma manobra nefasta, isso também foi utilizado para enfatizar: 1) que a politica não resolve nada e 2) a suposta superioridade gaúcha.

Alguns grupos tradicionalistas produziram vídeos exaltando a superioridade moral dos gaúchos, evocando xenofobia, racismo e o ideal separatista, enquanto exibiam as bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul. Influenciadores da "red pill" usaram teorias da conspiração, afirmando que "o sistema" esconde o poder da solidariedade coletiva para evitar que as pessoas descubram sua independência e força. "Somos nós por nós", proclamam, "o povo gaúcho se afunda para salvar pessoas e animais, enquanto a Matrix ri da nossa cara."

Adesão à extrema direita vai além da manipulação da notícia

A expansão da extrema direita não é um processo totalizante. Existe resistência significativa. A solidariedade coletiva, impulsionada pelos esforços da sociedade civil, continua forte. Políticos diversos trabalharam incansavelmente na linha de frente para apoiar as vítimas e garantir a transferência de recursos ao estado. Servidores públicos, incluindo policiais e bombeiros, atuavam bravamente além do seu limite.

Apesar disso, a atração por soluções autoritárias simplistas persiste em um mundo cada vez mais instável. À medida que enfrentamos a emergência climática global, o alerta vindo do sul do país merece atenção. Não basta apenas combater a desinformação e proteger as eleições: é crucial fomentar a participação democrática coletiva, enfrentar as desigualdades socioeconômicas e os interesses das elites políticas e econômicas, cujas agendas são responsáveis por causar esses desastres.

A enchente não produziu uma virada radical à direita. No entanto, a emergência climática age como um acelerador, uma infecção oportunista. Nos últimos anos, setores progressistas repetiram erros semelhantes: a autoilusão de que as pessoas agirão racionalmente contra negacionistas, a crença de que a adesão à extrema direita se deve exclusivamente à manipulação de fake news, e a esperança de que vitórias eleitorais resolverão todos os problemas da democracia. Já aprendemos que não é bem assim.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga e professora titular da Universidade de Dublin (UCD) e diretora do Digital Economy and Extreme Politics Lab (DeepLab).

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