Julgamento de 50 homens acusados de estupros de idosa francesa atrai jornalistas do mundo todo
Há três semanas, a cidade de Avignon, no sul da França, foi invadida por jornalistas do mundo inteiro. O chamado "processo de Mazan", sobre múltiplos estupros organizados pelo marido da vítima, Gisèle Pelicot, sedada durante os atos, suscita forte interesse da imprensa internacional.
Daniella Franco, de Paris
"A França confronta o horror do caso de estupro e sedação" é a manchete de um suplemento especial do jornal americano New York Times. Como o célebre diário, outros grandes veículos, como o britânico The Guardian, o espanhol El País, e a revista alemã Der Spiegel, enviaram repórteres para acompanhar o julgamento.
A intensa e diária cobertura das mídias internacionais intriga até mesmo a imprensa francesa. A emissora BFMTV entrevistou jornalistas estrangeiros que acompanham o julgamento que evocam não apenas os fatos chocantes do "processo de Mazan", mas também a coragem da vítima, Gisèle Pelicot, de 72 anos, e o intenso debate que o caso suscita sobre a luta contra a cultura do estupro.
No total, 36 mídias foram credenciadas para fazer a cobertura dentro do tribunal de Vaucluse, em Avignon. Dezenas de outros repórteres sem autorização de acompanhar os bastidores do julgamento se posicionam nos arredores do local, na expectativa de obter uma declaração, um vídeo ou uma foto da francesa que se tornou um símbolo contra as agressões sexuais às mulheres.
Nas agências de fotografias internacionais, Gisèle aparece sempre cercada por dezenas de microfones. Com uma expressão segura e um andar calmo, ela encara as câmeras em algumas ocasiões, concede entrevista ao lado de seus advogados e agradece o apoio de militantes incansáveis que a aguardam durante as longas horas de audiência.
Para o jornal Libération, parte da fascinação da mídia estrangeira com o caso é alimentada pela figura da septuagenária, "uma mulher admirável que muitos não hesitam em classificar de heroína". Já o diário americano The Washington Post explica, em uma matéria, que não tem o hábito de revelar os nomes das vítimas de crimes sexuais, mas "nesse caso preciso, ela pediu para ser identificada com o seu sobrenome de casada, Gisèle Pelicot". Além disso, reitera, "a vítima pediu que o processo ocorresse em audiência pública porque ela queria que o mundo soubesse o que lhe aconteceu".
"É preciso perguntar aos jornalistas ausentes porque não vieram", diz Catherine Porter, repórter do The New York Times ao ser questionada pela rádio francesa RMC sobre o interesse internacional sobre o caso. Já para o jornalista espanhol Enric Bonet, o julgamento "mexe com o nosso interior" e "mobiliza a sociedade".
Fatos chocantes
"Tudo nesse caso fascina as mídias", observa o jornal francês Libération. Para o diário, o principal interesse se dá pelo choque com os fatos: um idoso que drogou sua esposa durante dez anos, após quatro décadas de casamento, para estuprá-la e oferecê-la ser violentada inconsciente por dezenas de desconhecidos.
Muito além de retratar os atos de Dominique Pelicot e as dezenas de outros acusados, a imprensa internacional ainda convida à reflexão. A revista alemã Der Spiegel refuta a utilização da palavra "monstro" para se referir ao ex-marido de Gisèle. "Seria bem mais preocupante admitir que os estupradores estão todos grudados no tecido social contínuo da misoginia banalizada", publica.
Já o diário El País convida os leitores a considerar a simplicidade da origem do caso: um marido que estupra a esposa. Por causa das perdas de memória resultantes da ingestão de altas e frequentes doses de ansiolíticos, Gisèle chegou a cogitar que estava sofrendo de Alzheimer ou que poderia ter um tumor no cérebro. "Mas se tratava de algo ainda mais sinistro: um marido", diz o jornal espanhol.
Relembre o caso
"O processo de Mazan" - em referência à cidade no sul da França onde Gisèle e Dominique Pelicot viviam e os estupros ocorriam - teve início em 2 de setembro. A previsão é que ele dure até 20 de dezembro, tamanha a gravidade e complexidade do caso. O julgamento ocorre no tribunal de Vaucluse, em Avignon.
No total, 50 homens estão sendo julgados - entre eles, o ex-marido de Gisèle, Dominique Pelicot, de 71 anos - e outros 49 homens que foram recrutados por ele para estuprar a sua então esposa. A francesa era sedada com altas doses de ansiolítico, chegou a procurar médicos por problemas de memória, por contrair doenças sexualmente transmissíveis e dores nas partes íntimas, mas jamais suspeitou dos estupros.
A polícia francesa contabilizou cerca de 200 estupros, que ocorreram de julho de 2011 a outubro de 2020. Destes, 92 foram cometidos por 50 homens que puderam ser reconhecidos e são julgados atualmente. Outros 29 potenciais estupradores não puderam ser identificados.
Um acusado, Jean-Pierre M, de 63 anos, está sendo julgado nesse mesmo processo por estupro de sua esposa. O sexagenário conheceu Dominique Pelicot em um site pornográfico que o instruiu sobre o modus operandi da sedação e estupros de Gisèle. Ambos são acusados de dopar e violar a esposa de Jean-Pierre em ao menos 12 ocasiões.
A principal vítima do processo Mazan, Gisèle Pelicot depôs na primeira semana do julgamento e voltou a falar na quarta-feira (18), quando foi interrogada pela defesa do ex-marido. Os advogados usam o argumento de que a vítima estaria consciente durante "os atos sexuais", uma alegação que a septuagenária considera "humilhante".
Dominique Pelicot, principal acusado, testemunhou pela primeira nessa semana e admitiu ser um "estuprador", "como todos os outros" no tribunal. Sua defesa tem a estratégia de tentar dividir a responsabilidade dos atos com os outros acusados.
Nessa semana também tiveram início os depoimentos dos co-acusados no caso. O primeiro deles, Lionel, de 44 anos, reconheceu jamais ter obtido o consentimento de Gisèle, mas afirma não ter consciência de ter praticado um estupro.
Os homens julgados têm idades que vão dos 26 aos 73 anos, pertencem a classes sociais variadas e executam diversas profissões - jardineiro, bombeiro, pedreiro, enfermeiro, engenheiros, aposentados, militares e um é jornalista. A maioria deles não tem antecedentes criminais, boa parte é casado e tem filhos.
Todos os acusados podem ser condenados a até 20 anos de prisão.
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