Analistas temem enfraquecimento do Poder Judiciário no México com reforma de juízes eleitos
O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, garantiu que o México dará um "exemplo ao mundo" com a eleição de ministros da Suprema Corte, juízes e desembargadores, aprovada nesta quarta-feira (11) no Senado. Esta reforma é criticada pela ONU, pela ONG Human Rights Watch, e países como os Estados Unidos e o Canadá, que têm relações estreitas com o vizinho latino-americano. Especialistas ouvidos pela RFI também temem pela perda de independência do Poder Judiciário mexicano com as novas regras.
"Faremos grandes progressos quando juízes, desembargadores e ministros forem eleitos livremente pelo povo do México", disse Lopez Obrador. Essa reforma inédita foi uma proposta do líder mexicano, em fim de mandato, no contexto de um confronto com a Suprema Corte, que bloqueou reformas que ampliavam a participação do Estado no setor energético e colocavam a segurança pública sob controle militar.
López Obrador acusa a mais alta corte do país e alguns juízes de estarem a serviço da corrupção e de grupos criminosos, além de serem aliados de seus adversários políticos. Mas a presidente da Suprema Corte, Norma Piña, afirma que a eleição de juízes e magistrados representa uma "demolição" do Poder Judiciário.
"O processo mexicano tem algumas peculiaridades, embora ele também se enquadre nessa dinâmica que a gente tem assistido nos últimos anos, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e em vários países, de um protagonismo maior das Cortes Supremas e Constitucionais, que fazem com que elas sejam jogadas no processo político", diz Pablo Holmes, professor do Instituto de Ciência Política e da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Holmes recorda que o líder mexicano de esquerda vinha descredibilizando o Judiciário há algum tempo. "Uma das decisões que mais o incomodou foi relativa à militarização da guarda nacional para combater o tráfico de drogas", relembra. O Supremo mexicano determinou que o comando militar dessa força era inconstitucional e isso deixou López Obrador muito insatisfeito, fazendo com que subisse o tom nas críticas.
"Ele associa os ministros da Corte Suprema à oligarquia que governou o México durante décadas - o país foi dirigido pelo mesmo partido, de forma extremamente oligárquica, com grande influência no Judiciário durante 70 anos", reconhece o cientista político da UnB. "Nesse aspecto ele não está errado", ressalta Holmes, "mas López Obrador é um político ambíguo, complexo, da tradição de esquerda populista latino-americana que apela às massas". No caso da resistência enfrentada à sua política, ele voltou a evocar os interesses do povo contra os das elites e passou a incluir o Judiciário como parte dessas elites. "Esta é uma estratégia problemática", diz o cientista político da UnB.
Álvaro Jorge, professor da Faculdade de Direito da FGV-RJ, concorda com o colega de Brasília. "Este embate entre as Supremas Cortes e os projetos políticos de poderes executivos ao redor do mundo é um tema antigo, que faz parte da separação de poderes", explica. No mundo ocidental, estabeleceu-se que o papel para ter a última palavra sobre a interpretação correta da Constituição cabe às cortes constitucionais e, em várias ocasiões, os tribunais acabam por tomar decisões que são contrárias a uma visão política.
Retorno do populismo
"Essa é uma discussão que vem borbulhando no mundo inteiro, um movimento de buscar alterar a composição, a idade, a forma de escolha dos ministros das Supremas Cortes e, em geral, é associado a presidências mais populistas", observa Álvaro Jorge. O especialista cita como exemplos recentes reformas ocorridas em El Salvador, na Hungria, Polônia e nos Estados Unidos.
Até agora, o México adotava um modelo de nomeação de juízes de tribunais de alta instância semelhante ao do Brasil, dos Estados Unidos, do Chile ou da Argentina. O presidente indicava um nome e o escolhido deveria ser ratificado pelo Senado, o que naturalmente gerava uma independência de ação em relação ao Poder Executivo. Ocorre que tem ocorrido uma politização eleitoral desse processo, destaca o analista da UnB, "como acontece no Brasil atualmente, em que políticos afirmam que pelo fato de os juízes do Supremo Tribunal Federal não serem eleitos pelo povo, eles não teriam legitimidade, o que é um absurdo", opina Holmes.
"A função de uma corte é exatamente funcionar como um órgão totalmente independente do Legislativo e do Executivo para aplicar a Constituição, inclusive nos casos em que o Congresso viola a Constituição", enfatiza o professor.
No caso do México, o juiz será eleito e terá um mandato limitado por regulamentações que ainda serão definidas no futuro. "Mas está claro que isso cria uma dependência muito grande do juiz em relação aos atores políticos", aponta Holmes. A tendência é de que o Judiciário mexicano se torne muito mais dependente de quem está no poder, explica, criando um cenário de instabilidade. "A eleição é uma das piores soluções possíveis e me parece que é o que acontecerá no México", afirma.
Álvaro Jorge, da FGV-RJ, aponta um contrassenso estrutural entre ter uma Suprema Corte que zela pelo cumprimento dos direitos previstos na Constituição, entre eles liberdade e igualdade, entre outros, defendidos em relação a vontades de uma maioria, e uma corte eleita por voto popular. Para dar um exemplo de contradição, ele cita questões de direitos reprodutivos e de identidade sexual, ou seja, temas que por natureza enfrentam resistência de pessoas e setores conservadores da sociedade. "A Suprema Corte existe para proteger as minorias", salienta. "Se o processo de escolha de ministros levar em consideração a visão de uma maioria sobre determinado magistrado, parece que a gente vai ter um problema estrutural, de privilegiar a vontade das maiorias em detrimento de minorias", avalia o professor da FGV do Rio de Janeiro.
Aplicação da reforma depende de regulamentação
Por enquanto, a reforma aprovada no Senado mexicano estipulou a eleição direta de juízes, incluindo os da Suprema Corte, uma redução do número de juízes dos tribunais superiores e a criação de um novo tribunal de disciplina judicial, o que é um elemento considerado "perigoso", na avaliação de Pablo Holmes.
"Uma coisa é você ter, o que é comum em vários países, um órgão de governança como nós temos o Conselho Nacional de Justiça no Brasil. Outra coisa é você ter um órgão que discipline a atuação jurisdicional dos juízes, e isso para mim não está claro ainda", destaca. Se este organismo vier a ser controlado por um partido ou por uma força política, ele poderá constranger ainda mais os juízes, mesmo se forem eleitos.
Em 1° de outubro, a presidente eleita do México, Claudia Sheinbaum, afilhada política de López Obrador, tomará posse como a primeira mulher na direção do país. Holmes aponta que Sheinbaum não tem as mesmas características do atual líder mexicano. "Ela tem uma trajetória mais democrática, é uma figura política que tem, digamos assim, uma atuação mais comedida, uma relação muito forte com a questão ambiental, é uma cientista que vem da universidade. Ela é um quadro muito técnico e não tem as mesmas características pessoais de López Obrador de apelar para o discurso populista", observa o professor da UnB. "Eu acho que a gente precisa esperar um pouco para ver como é que essa reforma vai se dar sob a sua presidência", conclui.
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