Em resposta a isso, o setor de fusão está crescendo rapidamente e a piada de que a fusão está “a 30 anos de distância e sempre estará” começa a perder credibilidade à medida que a tecnologia ultrapassa o estágio experimental.
Mas é muito fácil gerar entusiasmo em torno de uma solução aparentemente ideal para os desafios da sociedade, e eu diria que tornar a energia de fusão uma realidade pode entrar em conflito com os problemas que ela se propõe a resolver.
Contextualizar esse hype e explorar as áreas em que essas tensões podem surgir é fundamental para garantir que a tecnologia se desenvolva de forma eticamente sólida e possa proporcionar benefícios sociais líquidos, caso se mostre viável.
Apelo evidente
O apelo de uma fonte de energia sem emissão de carbono, com pouco desperdício, confiável e relativamente segura, como a fusão, é evidente. Ela está inserida no contexto da crescente demanda global por energia e das mudanças climáticas. Tudo isso exige uma transição para um sistema de energia de geração mais limpa.
Acredita-se amplamente que a energia de fusão seria capaz de preencher as lacunas das fontes de energia existentes. Por exemplo, ela contornaria a intermitência das energias renováveis, já que o fornecimento de energia solar e eólica é imprevisível, pois depende do clima. A fusão também evita os resíduos radioativos de longa duração, os problemas de segurança e as preocupações do público em relação à energia de fissão nuclear convencional. Ela ajudaria a reduzir o custo do carbono e as emissões de gases de efeito estufa dos combustíveis fósseis.
A energia de fusão também pode aplacar as preocupações com a segurança energética, pois alguns de seus principais recursos são abundantes. Por exemplo, o deutério, combustível usado em alguns processos de fusão, pode ser prontamente extraído da água do mar. Isso reduziria a dependência de importações e protegeria as nações contra choques no mercado global.
Questões éticas
Mas esses benefícios podem mascarar questões éticas mais profundas relacionadas ao desenvolvimento da tecnologia e a alguns impactos potencialmente prejudiciais. Talvez um dos exemplos mais claros dessa tensão surja em relação à sustentabilidade ambiental. Isso se aplica particularmente à associação com a mitigação das mudanças climáticas e a redução das emissões de gases de efeito estufa.
As mudanças climáticas são uma questão que se presta à abordagem “tecno-fix” - em outras palavras, pode ser tentador evitar fazer mudanças importantes em nosso comportamento porque achamos a tecnologia pode consertar tudo. Isso é conhecido como o argumento da “obstrução da mitigação”.
Justiça e equidade
Equiparar as emissões de gases de efeito estufa com a demanda por energia também levanta questões de justiça e equidade. A demanda por energia está crescendo mais fortemente em determinadas regiões, principalmente nos países do Sul Global, que contribuíram menos para a atual crise climática. No entanto, os programas de fusão estão baseados, em sua maioria, no norte global. Portanto, se a fusão se mostrar viável, as pessoas com acesso a essa tecnologia transformadora não serão necessariamente as que mais precisarão dela.
As mudanças climáticas são um desafio global. Portanto, qualquer solução proposta deve levar em conta o impacto global. É preciso fazer esforços para reconhecer o contexto do desenvolvimento e incorporar considerações sobre a desigualdade global na implantação da fusão se quisermos enfrentar o desafio climático.
Preocupações semelhantes podem ser encontradas nos materiais usados para a geração de energia da fusão. Isso inclui minerais essenciais, como lítio, tungstênio e cobalto. A extração e o processamento desses minerais emitem gases de efeito estufa. Em alguns casos, as operações de extração estão localizadas em terras de povos indígenas ou próximas a elas. E as cadeias de suprimentos desses materiais estão inseridas em um cenário de tensões geopolíticas, com a formação de alianças, colaboração, concorrência e a possibilidade de monopólios.
O mercúrio, por exemplo, é usado no processamento de lítio para reatores de fusão. Além de ser tóxico e prejudicial ao meio ambiente, o fornecimento deste elemento depende em grande parte da produção chinesa.
O ritmo acelerado do desenvolvimento da energia de fusão aumenta o risco de se ignorar esses possíveis perigos ao longo do caminho. Eu diria, no entanto, que esse não é um caso em que precisamos acionar os freios morais, mas sim mudar a marcha. Abordar essas possíveis tensões exige uma reflexão sistemática durante todo o processo de desenvolvimento, desde refletir sobre as implicações das decisões dos projeto e escolhas de materiais até as estratégias de implantação equitativa e o compartilhamento de conhecimento.
O acesso à energia sustenta o bem-estar e o desenvolvimento humano, e o sistema energético como um todo tem impactos sociais profundos. Deixar de se envolver abertamente com os desafios sociais e éticos das tecnologias novas e emergentes nesse setor seria, na melhor das hipóteses, irresponsável e, na pior, prejudicial. Isso é particularmente verdade quando os impactos da tecnologia de fusão podem agravar os exatos problemas que ela pretende sanar.
*Sophie Cogan é PhD Candidate em Políticas e Meio Embiente na Universidade de York
Este artigo foi republicado do The Conversation sob um licença Creative Commons. Leia o original.