Teatro: Christiane Jatahy revisita fantasmagorias de 'Hamlet' em Paris com seu maquinário de revolução e desejo
Ser ou não ser, eis a questão. A frase antológica de Shakespeare dita por Hamlet, triste príncipe dinamarquês assombrado por espectros do passado, ganha novas e surpreendentes cores na versão que a diretora brasileira Christiane Jatahy, premiada com o Leão de Ouro da Mostra de Veneza, estreia nesta terça-feira (5) deste texto clássico no teatro Odéon, em Paris, instituição da qual ela é artista associada, além do Centquatre, também na capital francesa, e do Schauspielhaus de Zurique, na Suíça.
Encarnada pela atriz francesa Clotilde Hesme, nome recorrente nos palcos e telas francesas, Hamlet é agora uma mulher, capaz de olhar para as violências do passado e para sua propria violência, operando mudanças e revoluções, num dispositivo que se revela como assinatura no teatro de Christiane Jatahy. Mais do que ser ou não ser, como ser, porque ser e quando sê-lo, para quem ser, e como modificar e transcender as limitações de suas própria identidade e densidade para desarmar maquinários de reprodução da violência são questões-chave em vários trabalhos da diretora brasileira.
Uma frase que eu acho que a gente repete muitas vezes na peça, seja como pergunta ou como afirmação é: 'Eu preciso ser cruel para ser justa?', porque, no fim das contas, também é esse o impulso que o/a Hamlet tem que responder...
O Hamlet que Jatahy estreia em Paris mira nas revoluções e transformações possíveis de cada um de nós, enquanto indivíduos, ou coletivamente. "Essa peça fala de transformações muito importantes. E a personagem da Ofélia é uma protagonista dessas mudanças, assim como Hamlet, que se confronta com sua questão do 'ser' e que passa também a reproduzir (ou não) uma determinada violência, porque o espetáculo também é sobre isso", conta Christiane Jatahy. "Uma frase que eu acho que a gente repete muitas vezes na peça, seja como pergunta ou como afirmação é: 'Eu preciso ser cruel para ser justa?', porque, no fim das contas, também é esse o impulso que o/a Hamlet tem que responder", diz a diretora.
Jatahy conta que a escolha de trazer Hamlet para um corpo feminino, "cis ou trans", ultrapassa a questão de gênero. "É como se essa mulher estivesse sempre ali, entendeu? É sempre muito delicado, porque envolve também várias camadas. Às vezes eu faço alguma referência ao Orlando [texto clássico de Virginia Woolf], porque só mesmo a sensibilidade da mulher consegue olhar para essa história, reviver essa história, porque ao reviver essa história, como em muitas das minhas peças, trata-se de uma tentativa de não reproduzi-las", resume a diretora.
"A missão que o Hamlet recebe é de violência, né? Essa luta interna... E a cada vez se repete a história caindo nessa violência, verificando quais são os conflitos que isso coloca e o que isso opera na transformação do personagem. Isso é super importante, além da figura da Ofélia, que não é aquela figura da mulher do femicídio, da mulher suicida, da mulher objeto de desejo, a ninfa morta tão reproduzida em tantas pinturas do imaginário misógino", pondera a artista.
Fantasmagorias
"Tem muita fantasmagoria nessa peça, e, inclusive, esses personagens que estão lá de alguma maneira são fantasmas da sua própria história", diz Jatahy sobre os espectros que rondam seus personagens, na adaptação que ela assina do texto clássico do bardo inglês. "As fantasmagorias são muito importantes nessa versão. A ideia de que o passado se cruza com o presente, também num lugar de fantasma. E numa relação com o infinito, o oito do infinito, em que as coisas vão se tocando", diz a encenadora brasileira.
Patriarcado, herança hamletiana e universal
Questões atuais, introjetadas dentro de cada um de nós, como as violências do patriarcado, também são revisitadas pela diretora brasileira e sua Hamlet, incorporada por Clotilde Hesme. O patriarcado assim vem com muitas camadas, e muitas camadas que são profundamente introjetadas em nós mesmos, inclusive nós mulheres", pontua Jatahy. "E existe, claro, toda uma discussão de como a gente muda isso socialmente, porque tem que ser mudado, isso é mais um fracasso violento", diz.
"Revolução, nem sempre quer dizer alguma coisa necessariamente violenta, né? Quer dizer, a revolução tem violências, mas não é sobre a violência. A revolução no sentido de transformação, essa é a questão que a gente está tocando, tratando, se perguntando na peça, como isso está dentro do próprio personagem do Hamlet? E como está também em todas as figuras, principalmente femininas, da peça?", questiona a encenadora brasileira, que já passou por incursões e adaptações prévias de Shakespeare em sua trajetória, especificamente com "A Floresta que Anda", em 2016, fechando a trilogia iniciada com Strindberg ("Júlia", baseada em "Senhorita Júlia") e Tchecov ("E se elas fossem para Moscou?", a partir de "Três irmãs"), uma performance livremente inspirada de "Macbeth", assim como "Before the Sky falls" ("Avant que le ciel tombe"), segundo volume da Trilogia dos Horrores, encenado na Suíça em 2021.
Festa, lugar onde caem as máscaras
"Tenho algumas coisas retomadas em vários de meus trabalhos, a água é um elemento que está sempre presente de muitas formas e, novamente agora, com a personagem de Ofélia. E a festa, que tem uma ideia da gira, né? E a gira é o movimento, sim. Ela, a festa é a festa, ela traz a possibilidade da queda das máscaras e das mudanças de estado, é o lugar dos debordamentos", diz Jatahy.
"O que transborda das festas é a dança, a música, é toda essa coisa que sai um pouco do racional e nos atravessa em outros lugares", diz. "Eu particularmente adoro festas, eu acho que são as festas dos amigos, as festas de celebração. Mas também tem as festas de família, né? Em que muitas verdades vêm à tona. Então, esse lugar de uma comunidade que se encontra para celebrar, para chorar suas dores, para também se reencontrar no lugar do amor assim, porque chorar as dores às vezes te possibilita um reencontro com o amor", acredita.
"Hamlet", de Christiane Jatahy, fica em cartaz até o dia 14 de abril no Teatro Odéon, em Paris, e deve se apresentar no Brasil em 2025.