Intoxicação por nicotina e dívidas: a vida dos plantadores de fumo de rolo
Gilsa tinha uma "bebedice" que achava que ia morrer. Vomitava, perdia as forças, "uma coisa horrível". Mas a sensação que ela descreve não tem nada a ver com o consumo de álcool. É a doença da folha verde do tabaco, intoxicação por nicotina que afeta trabalhadores das lavouras de fumo - conhecida como "bebedice" em Alagoas e "porre de fumo" no Sul.
"Tinha que trabalhar de novo, mesmo doente, porque não podia deixar de colher", conta Gilsa Felix da Silva, 48, que trabalhou com fumo dos dez aos 25 anos nos arredores de Arapiraca (AL). Hoje, está no ramo das hortaliças.
Arapiraca, a segunda maior cidade de Alagoas, já foi conhecida como "capital do fumo". Ainda hoje, os arredores concentram as 7,4 mil propriedades de cultivo de tabaco do estado. Ali, o fumo é a principal atividade econômica de agricultores familiares, responsáveis pela maior parte da produção e também vítimas de intoxicação por nicotina e agrotóxicos, além de endividamento.
O tabaco alagoano não é aquele dos cigarros industrializados, de empresas como Philip Morris e British American Tobacco. O que se produz ali é o chamado fumo de corda ou de rolo, usado principalmente em cigarros enrolados à mão, e que entrou em franca decadência a partir do fim dos anos 1990.
"Depois dos anos 2000, só mesmo os agricultores familiares continuaram no fumo, por uma questão de sobrevivência. E a vida deles ficou ainda mais difícil", diz Geraldo Balbino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Arapiraca. Muitos querem mudar de atividade, mas as opções economicamente viáveis são escassas, e há pouco ou nenhum incentivo por parte do poder público.
Overdose de nicotina
A bebedice, como chama Gilsa, acontece quando os agricultores manuseiam as folhas verdes na presença de alguma umidade, seja de suor, chuva ou orvalho. A nicotina das folhas é então "puxada" para a superfície e absorvida pela pele. Pense que os agricultores passam o dia quebrando folhas verdes e carregando montes delas junto ao corpo. Lembre que tudo isso é feito debaixo do sol forte do Nordeste. Pronto: as lavouras em Alagoas reúnem as condições perfeitas para o aparecimento da bebedice.
Apesar de o Brasil ser um dos maiores produtores mundiais de tabaco, por aqui os primeiros casos da doença só foram reportados em 2007, justamente em Arapiraca. Mas as cidades da região não possuem dados sobre a prevalência do problema, segundo Dayana Pimentel, gerente do Cerest (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador) da cidade.
O nível de subnotificação é alto porque raramente os agricultores procuram algum serviço de saúde. "Às vezes fico mal, mas uma hora passa. E continuo no serviço. Fazer o quê? Tenho que trabalhar", resume Rosa Emília, 56, que planta tabaco na comunidade Sítio Capim, perto de Arapiraca. Alguns agricultores acabam tomando remédio por conta própria, antes da colheita, na tentativa de evitar a bebedice.
Até quem não tem sintomas pode estar intoxicado. Há alguns anos, no Rio Grande do Sul, o Cerest da Região dos Vales coletou amostras de urina de 80 fumicultores, 76 deles assintomáticos. A doença da folha verde foi identificada em um terço deles. Os efeitos de longo prazo dessa exposição à nicotina não são conhecidos.
Além disso, os plantadores de tabaco sofrem com intoxicações por agrotóxicos. "Há resistência grande quanto ao uso de equipamentos de proteção individual, por ser um equipamento incômodo, quente. E também caro: muitas vezes eles não têm condições de comprar", aponta Pimentel, do Cerest.
Frank dos Santos, 43, também de Capim, já sofre os efeitos de longo prazo da exposição aos produtos. "Comecei a ter um problema de vista, e o médico disse que tem relação com agrotóxicos. Hoje, não consigo nem ver TV por muito tempo, os olhos ardem."
Do boom à crise
O Brasil é o maior exportador e o terceiro maior produtor de fumo no mundo, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Hoje, o cultivo está altamente concentrado nos três estados do Sul, responsáveis por mais de 95% da produção no país.
Mas nem sempre foi assim: na verdade, a história do fumo no Brasil começou no Nordeste. O tabaco já era cultivado por indígenas bem antes da chegada dos portugueses, que começaram a comercializar a planta em meados dos anos 1570.
Durante muito tempo, havia lavouras de tabaco apenas onde hoje ficam Alagoas, Bahia e Pernambuco. O cultivo no Sul só começou três séculos depois, e logo se estabeleceu uma diferença: enquanto o Nordeste produzia um fumo escuro, rústico, no Sul foi incentivada a produção de variedades mais claras e suaves. Também foi ali que se instalaram empresas que dominariam o mercado, como a Souza Cruz.
No Nordeste, os agricultores vendem o fumo escuro de duas formas: para exportação, para a produção de capas de charuto, ou para abastecer o mercado interno, na forma de fumo de rolo. "Nasci na década de 1970. Naquela época, quando um jovem completava 14, 16 anos, já se preocupava em ter sua própria roça de fumo", lembra Balbino. Mas a coisa começou a desandar na década de 1990, quando o fumo de corda começou a perder terreno e seu consumo fora das regiões Norte e Nordeste quase desapareceu.
Hoje, ele não está nem mesmo nos cigarrinhos de enrolar que voltaram a fazer sucesso nos centros urbanos: estes contêm, geralmente, tabacos claros do Sul. Se nos anos 1980 Alagoas teve em média 35 mil hectares de fumo colhidos por ano, na década de 2010 a média foi de apenas 9,4 mil, segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
"Das quase 20 exportadoras de Arapiraca, hoje só sobraram duas, que não trabalham com fumo de rolo, e sim com folhas para capa de charuto", diz Fábio Ribeiro. Ele gerencia uma dessas empresas, a CAPA, criada por seu pai.
Com a queda na demanda, os grandes produtores começaram a migrar para outras atividades, como a pecuária e o cultivo de milho. Mas para os agricultores familiares, que têm poucos recursos e vivem em terras muito pequenas (ou nem terra possuem), mudar de atividade não é tão fácil.
Acesso à terra
Atrás das casas da comunidade Sítio Capim, há quintais espaçosos, muitos deles com fumo plantado. "Essa terra era do meu pai, planto aqui desde criança", diz Genival José, mostrando o espaço de pouco mais de um hectare.
Hoje, a produção de fumo em Alagoas é tocada basicamente por produtores familiares como Genival, em comunidades como o Capim: a área média plantada é de um hectare por estabelecimento, segundo o Censo Agropecuário de 2017.
Mas nem todos que plantam fumo têm terra. Segundo o secretário de Agricultura de Arapiraca, Hibernon Cavalcante, só 60% dos produtores de fumo do município plantam em terras próprias - o restante trabalha em propriedades de terceiros.
Produtores que arrendam a terra (espécie de aluguel) costumam desembolsar entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil, ao final da safra. "Tinha vezes que, depois de tirar o pagamento do dono da terra e os custos da produção, não sobrava o suficiente para pagar as contas", lembra Ivonete Bernardo, hoje secretária de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Arapiraca. Ela e sua família trabalharam em terras arrendadas até 2001, quando se mudaram para o Assentamento Ceci Cunha, onde seguem cultivando tabaco.
Mesmo quem tem a própria terra vem passando dificuldade. Segundo o agricultor Cláudio dos Santos, o trabalho em meio hectare rende, quando não há estiagens ou muita chuva, R$ 10 mil brutos em um ano - e normalmente envolve o trabalho de boa parte da família.
Embora o tabaco não seja uma planta de ciclo muito longo (são cinco meses entre a semeadura e a colheita), os trabalhadores ficam envolvidos com a safra o ano inteiro, porque antes de plantar é preciso preparar as mudas e o solo. E após a colheita, há o processo de secagem, destalação e "viração" do fumo, até que esteja pronto para a venda - etapas que levam meses, são artesanais e trabalhosas.
Vendas baixas e desilusão
Nas feiras de fumo da região, trabalhadores tentam vender sua pequena produção a atravessadores, que vão acumulando volumes maiores para oferecerem às empresas, para quem não interessa negociar poucas quantidades. Elas, por sua vez, processam o tabaco e o vendem em pacotinhos para os consumidores finais.
"Para negociar com as empresas, é preciso juntar cinco, 10, 15 toneladas de fumo curado", aponta Geraldo Balbino, notando que a produção anual de cada agricultor não costuma chegar a uma ou duas toneladas.
Na feira de Craíbas, município perto de Arapiraca, o clima é de desilusão. As folhas valem mais depois de enroladas e curadas, mas muitos produtores acabam vendendo as plantas inteiras, porque precisam do dinheiro rapidamente. Nesse caso, os atravessadores é que depois enrolam e curam.
"Achei melhor vender a folha inteira por R$ 7 [o quilo] do que ainda ter que enrolar e vender por R$ 10", explica Paulo do Nascimento. Ele tem 69 anos e uma dívida enorme para quitar. Chegou a vender o carro para continuar no negócio. "Fiz as contas e acho que em 2024 termino de pagar esses juros. E aí chega. Não quero mais plantar. O fumo me quebrou."
A sua queixa está longe de ser isolada. "Os donos das fábricas é que botam o preço. A gente é obrigado a vender", avalia José Marques, de 50 anos, que planta fumo há 35. "É muito difícil.. Gastei R$ 10 mil na lavoura este ano e, quando vender, vou apurar em torno de R$ 16 a R$ 17 mil. E a gente ainda tem que guardar uma parte para investir na próxima safra", afirma ele, que pretende abandonar o cultivo do tabaco. "Este foi o último ano que plantei. Até a terra vou vender, não tenho mais condições."