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Negros são menos de 10% dos alunos nas 20 top escolas privadas do Brasil

Ex-aluno do São Bento, do Rio, José Wallison Souza do Nascimento agora cursa medicina na UERJ - Divulgação
Ex-aluno do São Bento, do Rio, José Wallison Souza do Nascimento agora cursa medicina na UERJ Imagem: Divulgação
do UOL

Waleska Borges

Colaboração para o UOL, do Rio

23/05/2021 04h00Atualizada em 24/05/2021 10h12

Criado apenas pela mãe, José Wallison Souza do Nascimento, de 19 anos, carrega muitas mágoas, mas tem também tantos propósitos. Para conseguir tirá-los do papel, o morador do Complexo da Maré, na zona norte do Rio, contou com uma bolsa para estudar em um tradicional e conceituado colégio do Rio. Com a educação de elite, entrou para uma faculdade de medicina.

A história dele, porém, é exceção entre os estudantes pretos e pardos do país. Menos de 10% de todos os alunos das 20 melhores escolas privadas do Brasil são negros, aponta um levantamento do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) com base no Censo Escolar de 2020.

A pesquisa que mostra a desigualdade racial na elite do ensino privado do país averiguou instituições mais bem colocadas no Enem de 2019, localizadas em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Piauí e Paraná.

Nós temos aí grande parte da elite brasileira se formando em espaços quase totalmente brancos, que são essas escolas de alto desempenho
Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e coordenador da pesquisa no Gemaa

Na capital fluminense, são dez as escolas de elite educacional listadas. Entre elas, estão as duas unidades do Colégio Santo Agostinho, nos bairros do Leblon e Barra da Tijuca, ambas com baixo nível de não declaração de cor (30% e 0%, respectivamente).

As duas, no entanto, têm baixo percentual de pretos e pardos, de 1% e 2%, na mesma ordem. A mensalidade para o terceiro ano de ensino médio na escola é de R$ 4.322,69.

A situação é parecida na Escola Eleva (1% de negros) e no Colégio São Bento (3%), com mensalidades de R$ 5.486,00 e R$ 4.393,77, respectivamente.

Realidade similar ocorre na capital paulista, onde nenhum dos dez colégios com melhor desempenho no Enem 2019 registrou mais de 20% de alunos pretos ou pardos. A maioria das instituições oscilou entre 1% e 7%. O colégio Móbile, com mensalidade para o o último ano do ensino médio de R$ 4.675,00, registrou 1% de autodeclarados pretos e pardos. Este é o mesmo índice do Colégio Vértice (unidade II), com mensalidade de R$ 5.844,80.

"Com exceção de uma pública, são escolas muito caras. Além disso, são muito seletivas. Aplicam provas de ingresso duras para selecionar alunos com potencial de tirar notas altas em testes universitários. Isso gera um processo acumulativo de exclusão por classe, que acaba virando uma exclusão racial", afirma Campos.

Para ele, as ações afirmativas implementadas por muitas das escolas privadas para garantir o acesso de pessoas negras e pobres são pouco significativas e cosméticas. Ele cita, por exemplo, aulas de história da África ou uma política de capacitação das instituições para argumentar que são inclusivas. "É tudo sem efeito, 'para inglês ver' como se diz.". O professor afirma ainda que essas escolas são tão brancas quanto as da África do Sul no período do apartheid.

Escolas de países que consideramos mais racistas do que o Brasil, como Estados Unidos e África do Sul, são muito menos brancas que as escolas privadas daqui. A segregação nesses dois países é proibida, mas, no Brasil, corre solta, mesmo que a gente não tenha lei que mande segregar
Luiz Augusto Campos

Chegou a ter vergonha da cor, hoje cursa medicina

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Ex-aluno do Colégio São Bento, do Rio, José Wallison Souza do Nascimento agora cursa medicina na UERJ
Imagem: Divulgação

Para estudantes negros, ser exceção não é fácil. Durante o ensino médio cursado no Colégio São Bento, no Rio, Nascimento diz que saía da sala de aula para chorar no banheiro. Por não se ver em nada do que estudava, chegou a ter vergonha da sua cor e de sua origem. Ele se recorda de duas experiências que o machucaram.

"Um professor fez um comentário sobre o tom da minha pele. Todo mundo começou a rir ao meu redor. Inicialmente, não entendi. Depois, me senti extremamente violado. Um colega de sala também fez um comentário racista e preconceituoso com base no meu pai ausente e por eu ser negro", conta.

Uma ONG custeava a mensalidade dele e pagava auxílio para passagem e alimentação: "Fora isso, eu e minha mãe vivíamos com um salário mínimo".

Após concluir os estudos no São Bento em 2019, o jovem passou a cursar medicina na Uerj já no ano seguinte. "Agora me sinto muito mais representado. Há mais de 20 negros na minha turma."

'Sua mãe era escrava'

A cientista política e pesquisadora Isadora Lopes Harvey, 29, foi aluna de uma tradicional escola particular na zona sul do Rio.

Ela ia caminhando para a escola, próxima de sua casa, uma herança de família. Um padrinho ajudava a pagar as mensalidades da jovem, filha de uma professora e do consultor de estratégia e políticas públicas, Giovanni Harvey, 57, que também foi aluno de um colégio conceituado do Rio.

Isadora se lembra de que, além dela, havia outro estudante negro, o filho bolsista do pipoqueiro que trabalhava próximo da escola.

"Hoje, minha irmã, Maria Gabriela, de 12 anos, é estudante da Escola Eleva. A realidade dela é diferente. Além dela, há outros três negros entre os alunos que estudam com ela", diz.

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O consultor de estratégia e políticas públicas, Giovanni Harvey, pai da cientista política e pesquisadora, Isadora Lopes Harvey, e da estudante Maria Gabriela; todos estudam ou estudaram em escolas particulares de elite
Imagem: Divulgação

Nas escolas de elite, a exclusão ocorre antes mesmo de os alunos chegaram ao ensino médio. Moradora da Barra da Tijuca, zona oeste carioca, a jornalista Flávia Ribeiro, 47, precisou intervir quando o filho, então com seis anos, enfrentou um evento racista no Santo Agostinho. Na ocasião, o filho a relatou que uma colega da escola disse a ele: "sai daqui que sua mãe era escrava".

Ela procurou a direção da escola, o Conselho Tutelar e os pais da criança para conversar. Hoje, o menino, com 12 anos, ainda estuda na instituição, onde cursa o sexto do colégio.

"Eu e meu marido decidimos ter só um filho para dar o melhor para ele, conseguir pagar a mensalidade. Depois desse episódio, preparamos nosso filho para situações que ele poderá vir a enfrentar", conta.

Reflexo nas universidades

Para Campos, a exclusão racial no ensino médio se reflete nas universidades. Embora o ensino superior tenha ações afirmativas raciais e socioeconômicas, o principal público ainda é de alunos de escolas privadas.

Segundo um estudo do IBGE, aumentou de 50,5% para 55,6% a fatia de pretos e pardos com idades de 18 a 24 anos na universidade entre 2016 e 2018. Ainda assim, a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra que esse patamar ficou distante dos 78,8% de estudantes brancos na mesma faixa etária cursando o ensino superior.

"Apesar das cotas raciais nas universidades, brancos ainda são maioria, sobretudo em cursos mais concorridos", diz Campos.

Educação antirracista

A Escola Eleva informou que, com apenas cinco anos de existência, tem uma média maior (8%) de alunos autodeclarados pretos e pardos do que apontado no estudo. "A instituição estabelece a diversidade como uma de suas prioridades."

Ainda conforme a instituição, a educação antirracista está integrada à proposta pedagógica e presente na formação dos professores.

A Escola Eleva disse ainda oferecer 81 bolsas, em parceria com o Instituto Janelas Abertas, uma sociedade sem fins lucrativos, para alunos de famílias de baixa renda nas unidades do Rio e de Brasília.

O Colégio de São Bento informou que é uma instituição "que zela pelo respeito humano, em que não há qualquer segregação racial".

Também em nota, o Móbile se diz "consciente da desigualdade de oportunidades educacionais e [que] tem a diversidade como política interna". A instituição informa oferecer bolsas de estudo em parcerias com instituições sociais e contemplar em seu currículo projetos que sensibilizam os alunos para a multiplicidade cultural.

A escola informa ainda ter planos de criar um fundo para aumentar a oferta de bolsas de estudo e que mantém iniciativas sociais com alunos de escolas públicas.

Até a publicação desta reportagem, o Colégio Vértice e Colégio Santo Agostinho não se manifestaram.

Procurada, a Federação Nacional das Escolas Particulares informou que defende, apoia e incentiva ações afirmativas nas 40 mil instituições particulares de ensino brasileiras que representa. Juntas, atendem 15 milhões de alunos, dos quais 9 milhões na educação básica.

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