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Inteligência ou vingança? Especialistas analisam operação mais letal do RJ

7.mai.2021 - Após operação policial que deixou ao menos 28 mortes, marcas de tiros permanecem nas paredes dos becos da favela do Jacarezinho - Herculano Barreto Filho/UOL
7.mai.2021 - Após operação policial que deixou ao menos 28 mortes, marcas de tiros permanecem nas paredes dos becos da favela do Jacarezinho
Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL
do UOL

Tatiana Campbell

Colaboração para o UOL, no Rio

14/05/2021 14h02

Número recorde de óbitos em uma operação policial e indícios de mortes arbitrárias por policiais estão entre os principais motivos apontados por especialistas em segurança pública ouvidos pelo UOL para rebater autoridades fluminenses sobre a ação policial no Jacarezinho. Para eles, os agentes agiram motivados por vingança após a morte de um policial na operação.

Ao analisar os resultados da ação policial —que terminou com ao menos 28 mortes, a mais letal da história do estado—, eles discordam que a operação tenha sido técnica e orientada por inteligência, conforme afirmaram a Polícia Civil e o governador fluminense, Cláudio Castro (PSC), respectivamente.

"A ação foi pautada e orientada por um longo e detalhado trabalho de inteligência e investigação, que demorou dez meses para ser concluído", disse Castro após a operação por meio de nota.

Especialistas veem morte de policial como estopim

Na avaliação de José Augusto Rodrigues, do Laboratório de Análises da Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a operação se transformou em vingança após a morte do inspetor policial André Leonardo Mello Frias, 48.

"Vinte e sete pessoas mortas, isso é o padrão de uma chacina de vingança. Essa operação foi tudo, menos normal. A maior parte das pessoas já tinham largado as armas, já estavam se rendendo, e eles preferiram fazer uma chacina para vingar a morte do policial", afirmou ele, após ser questionado se considera que ação fora de inteligência.

Marcos Espínola, advogado criminalista com especialização em segurança pública, concorda que a morte do agente desencadeou as mortes. "Com certeza [a morte do policial] foi preponderante. Eles vão dizer que não, mas isso motiva os policiais, todos eles armados. Não tenho dúvida".

Os registros de ocorrência feitos por policiais civis envolvidos na operação do Jacarezinho mostram que 17 das 27 mortes cometidas por agentes ocorreram em um período de duas horas após um policial ser morto e em um raio de apenas 1,5 km.

Um estudo da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) revelou que, "quando morre um policial de serviço, posteriormente a letalidade policial nesse batalhão se aumenta", destacou o sociólogo Ignacio Cano.

A Polícia Civil nega denúncias de mortes arbitrárias. O órgão diz que os casos serão esclarecidos durante a investigação, acompanhada pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio).

Inteligência x Alta letalidade

Toda operação planejada é adiável. Se você está vendo que não é capaz de cumprir a missão, você não pode sabotar. A sociedade espera é que eles [as autoridades do estado] falem dos parâmetros técnicos, porque falar de inteligência no abstrato, é esconder os resultados

Jacqueline Muniz, doutora em estudos policiais na UFF

A especialista pontua que a morte de suspeitos vai na contramão da inteligência policial, uma vez que prejudica a investigação.

"Não importa se é um cidadão suspeito ou não, não existe pena de morte aqui. Matar a galinha dos ovos de ouro da investigação é mais um índice de incompetência. Quando você mata um suspeito criminoso, você acaba de matar a inteligência, a produção de conhecimento, porque ele é uma fonte [para a investigação]."

Para a cientista social Silvia Ramos, as operações em comunidades do Rio abandonam a técnica e a inteligência quando lançam mão da letalidade como método. A coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança pontua um viés racista das ações policiais.

Basta ser preto, pobre e morar em favela para ser suspeito. A polícia entra na favela e já atira. A polícia escolheu a letalidade como método e a ilegalidade como forma permanente de agir

Silvia Ramos, cientista social

A Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) —unidade de elite da Polícia Civil do Rio que atuou na operação do Jacarezinho— tem um histórico de alta letalidade nas favelas do Rio. Desde 2007, operações com participação desse grupo resultaram em ao menos 304 mortes. Para efeito de comparação, a Polícia Civil paulista soma no mesmo período 289 mortes cometidas por seus agentes.

Para Espínola, a operação do Jacarezinho "não foi bem-sucedida, isso é evidente, se perderam vidas". O especialista defende a importância da investigação das mortes. "Cada policial assinou laudo de resistência que matou A e B. Ele tem que justificar a munição que gastou. É ouvir os policiais e as pessoas."

Para prender três, eles mataram quase 30. Isso dá uma ideia clara das prioridades das políticas de segurança. Não há dúvidas de que há uma política de exterminar os criminosos, os suspeitos

Ignacio Cano, sociólogo

Silvia Ramos questiona a justificativa da Polícia Civil de que todos eram traficantes. "Dos 27 mortos, diversos foram executados, não existe a possibilidade, pela lógica de uma operação, em que em duas ou três horas, 27 pessoas reajam à polícia e a polícia tenha que matar em legítima defesa."

O UOL mostrou nesta semana que o inquérito policial que culminou na operação não cita crimes de sequestro de trens ou aliciamento de menores de idade no Jacarezinho, o que vai contra a justificativa da própria polícia sobre a investigação.

O inquérito não revela indícios de excepcionalidade que justifiquem a operação, disse o advogado Daniel Sarmento, que ajuizou ação no STF (Supremo Tribunal Federal) a partir da qual a Corte restringir as operações durante a pandemia no Rio.

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