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O que o Brasil perde se acordo UE-Mercosul naufragar?

23/09/2020 08h10

Na medida em que os prazos para o início da ratificação do acordo entre a União Europeia e o Mercosul se aproximam, as pressões aumentam para que o texto jamais saia do papel. Por razões ambientais, governos, entidades, ativistas, empresas e até a opinião pública europeia se voltam contra o pacto, que visa derrubar tarifas alfandegárias de 92% da pauta de exportações entre os dois blocos.

O que está em jogo são novas regras para o comércio bilateral, que representa 25% do PIB mundial e um mercado de 780 milhões de pessoas. As isenções progressivas de tarifas incluem commodities, produtos industrializados e de tecnologia. O governo brasileiro avalia que os ganhos para o país chegam a US$ 87 bilhões em tarifas alfandegárias, e atinjam US$ 125 bilhões se incluídas as barreiras não tarifárias.

"Mesmo sabendo que algumas cotas são relativamente pequenas para a exportação de produtos, o acordo teve uma simbologia muito importante, de quebrar a inércia do Brasil em acordos comerciais. Quem perde mais é a exportação do agro brasileiro: açúcar, cachaça arroz, carne bovina - mesmo que limitada à cota de 100 mil toneladas", detalha  Carlos Frederico Coelho, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio. "No fim das contas, quem perde são os consumidores."

Para analistas ouvidos pela RFI, a realidade é que o acordo pode estar, sim, a um passo de naufragar. "Eu acredito que isso pode, de fato, paralisar o acordo. Não é só uma pressão política de alguns líderes: ela reflete, no fundo, a existência de oposição popular, das populações locais, que já têm uma consciência ambiental desenvolvida", afirma o economista e professor da USP Celso Grisi, especialista em agronegócio e comércio exterior. "É natural que as próprias empresas comecem a tornar o desmatamento um negócio antieconômico - daí a importância de a Europa bloquear um acordo dessa natureza, mostrando ao empresário nacional que ele não pode dar cobertura, abrigar produtos dessas áreas."

O argentino Carlos Winograd, professor da Paris School of Economics, avalia que o bloco sul-americano parece não acreditar no peso das ameaças sobre o acordo. "O que era o lobby protecionista agrícola é, hoje, uma transformação política muito mais ampla - e isso não está sendo visto na América Latina. A agenda de meio ambiente se incorpora a frações urbanas das sociedades europeias", constata o pesquisador da PSE. "É uma situação estranha em que o Brasil, que está interessado no acordo, está construindo e justificando uma agenda contra o acordo pelas razões erradas. A Argentina, que não está favorável ao acordo, está olhando de fora e não fazendo nenhum esforço para encontrar mecanismos que o salvem."

Cláusula anexa para garantir compromissos ambientais

Do lado europeu, o texto está em fase de revisão legal, antes de ser traduzido para os idiomas dos 27 países que compõem o bloco. A expectativa da Comissão Europeia é que o Parlamento e o Conselho europeus realizem a votação ainda este ano. Na sequência, são os parlamentos nacionais que apreciarão o documento.

A Comissão Europeia tem trabalhado na inclusão de uma cláusula anexa de garantia do cumprimento de compromissos ambientais pelos países signatários, nos termos do Acordo de Paris sobre o Clima. Diante da revelação de cada novo recorde de desmatamento e queimadas no Brasil, os europeus ficam mais céticos de que o país permanece fiel às obrigações de redução de emissões de gases de estufa.

Ao mesmo tempo, os partidos ecologistas têm obtido votações inéditas nos últimos anos em países como a França, que está na linha de frente na oposição ao acordo com o Mercosul e a dois anos das próximas eleições. Coelho lembra que o lobby agrícola francês nunca aceitou o pacto com o Mercosul, negociado por 20 anos.

"Logo depois da assinatura do acordo, a gente já viu a água entrando no barco, com as desavenças entre Emmanuel Macron e Jair Bolsonaro, uma resistência que foi estendida a outros países, como Irlanda e Holanda. As coisas vem 'num crescendo'", argumenta o professor de Relações Internacionais. "Não creio que a posição seja especificamente quanto a tudo que está acontecendo na Amazônia e no Pantanal. Acho que abre a janela para fragilizar a posição de negociação brasileira e que os interesses, liderados pelos agricultores franceses, sejam atendidos", ressalta.

Janela de oportunidade para o acordo pode estar se fechando

Nas últimas semanas, a Alemanha, grande defensora do acordo no bloco pelas vantagens que ele oferece à indústria europeia, também mudou de postura. Berlim demonstra "preocupação" com a devastação da Amazônia e a "competição desleal" dos produtos sul-americanos, em detrimento ao meio ambiente. O Parlamento holandês já rejeitou o texto, e a Áustria adiantou que fará o mesmo.

Winograd frisa que a assinatura do acordo, em junho de 2019, ocorreu graças a uma rara conjunção de fatores favoráveis. "Como o Trump paralisou o acordo Transatlântico entre os Estados Unidos e a Europa, abriu-se uma oportunidade para as negociações com o Mercosul, coincidindo com um momento de busca de liderança por Macron e de fim de mandato de Merkel. Agora, ao entrarmos nos últimos dois anos de governo Macron, essa janela pode se fechar", explica o economista argentino.

Uma eventual derrota do presidente americano nas eleições de novembro, nos Estados Unidos, pioraria o cenário para o tratado, sublinha Winograd. Defensor do Multilateralismo, o democrata Joe Biden tende a reabrir negociações comerciais com os europeus e os americanos voltariam a passar na frente, nas prioridades do bloco. O acordo com o Mercosul poderia ficar engavetado ou simplesmente ser rejeitado.

Celso Grisi adverte que o enterro do acordo pode ser apenas o início de uma onda de boicotes comerciais à agricultura em áreas desmatadas ilegalmente. "E se a moda pegar e outros países, como o Canadá ou o Japão, dois países muito preocupados com a questão ambiental? Nós temos que ter cuidado se as coisas começarem a seguir nesse rumo. Não é a Europa: é o mundo que não quer mais isso", sublinha o professor da USP. "Inclusive porque esse é um sério problema para o próprio Brasil. O nosso regime de chuvas na região centro-oeste e sul depende do que chamamos de transvaporização da humidade da Amazônia e são trazidos pelos ventos para a agricultura alcançar o seu esplendor", ressalta Grisi.

Brasil rebate relatório francês

Nesta terça-feira (22), pouco depois de o presidente Jair Bolsonaro voltar a negar o problema do desmatamento na Amazônia em um discurso na Assembleia-geral da ONU, o governo brasileiro divulgou uma nota para rebater um relatório francês sobre o tema, publicado na sexta-feira (18). No documento, Paris alegou que a ratificação do tratado poderá resultar no aumento do desmatamento no bloco sul-americano, já que o acordo prevê mais exportações de carne para a Europa.

Em tom de ameaça, o texto de Brasília argumentou que, se o acordo entre o Mercosul e a União Europeia não sair, os problemas ambientais podem aumentar ainda mais.

"A não entrada em vigor do Acordo Mercosul-UE passaria mensagem negativa e estabeleceria claro desincentivo aos esforços do país para fortalecer ainda mais sua legislação ambiental. A não aprovação do Acordo teria, ademais, implicações sociais e econômicas negativas, que poderiam agravar ainda mais os problemas ambientais da região", diz a nota, assinada em conjunto pelos ministérios da Relações Exteriores (MRE) e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

"Malogro em ratificá-lo implicará lacuna importante no fortalecimento da relação entre as partes e na reiteração de um livre comércio sustentável e responsável, que proporcionará prosperidade com preservação da natureza, resultante da melhoria das condições econômicas", insiste o governo brasileiro.

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