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Com etanol e BID, governo ignora interesses econômicos e ajuda Trump, dizem especialistas

Os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, em reunião de 2019 em Washington - Mark Wilson/Getty Images
Os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, em reunião de 2019 em Washington Imagem: Mark Wilson/Getty Images

16/09/2020 05h02

Em poucos dias, o governo brasileiro tomou duas decisões que vão de encontro aos interesses do país, mas atendem à chamada "ala ideológica" de Brasília. Primeiro, o país aceitou prolongar a isenção do etanol importado dos Estados Unidos, em um momento em que, no Brasil, o setor sofre com a queda do consumo. Depois, apoiou a eleição de um candidato americano para presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), rompendo uma tradição histórica da instituição desde a sua criação, há 61 anos.

Conforme analistas ouvidos pela RFI, as duas medidas têm um objetivo: ajudar a reeleição de Trump.

"Eu acho que foram duas decisões muito difíceis de serem explicadas à luz do interesse brasileiro. O setor privado ficou contra, em um momento que está difícil para o etanol", afirma o ex-embaixador em Washington e Londres, Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice). "A ministra da Agricultura foi voto vencido e prevaleceu a posição ideológica do Itamaraty."

A bancada ruralista pressionou, em vão, o governo brasileiro a não renovar sem contrapartida a isenção de tarifa de importação sobre o etanol, que vigorou por 10 anos e expirou em 31 de agosto. A manutenção da medida era uma exigência do lobby do setor nos Estados Unidos, que responde por 90% do biocombustível importado pelo Brasil. No mês passado, Trump não hesitou em ameaçar o Brasil de retaliações, caso o imposto de 20% fosse restabelecido.

"Tupiniquim querendo agradar país grande"
O Planalto então decidiu que a cota dos americanos sem impostos diminuirá, de 750 milhões de litros para 187,5 milhões, mas será renovada por 90 dias - ou seja, contempla o período de campanha eleitoral nos Estados Unidos e as eleições, em novembro.

A decisão brasileira, que por enquanto ocorreu sem qualquer compensação, irritou os produtores do país, como a Glauber Silveira, presidente da Abramilho.

"Já temos um consumo mais baixo e todo o setor de etanol passando por dificuldades aqui. Abrir para a importação de etanol americano, sem taxa nenhuma e sendo que o etanol de lá é subsidiado e o nosso, não, é muito negativo", disse Silveira. "É uma coisa triste, simplesmente para agradar Trump no momento da eleição. Acho que o Brasil mostra, mais uma vez, que é um país tupiniquim querendo agradar um grande país."

A expectativa brasileira é de que, nos próximos três meses, as negociações levem a uma abertura do mercado americano para o açúcar brasileiro. Atualmente, o produto recebe um imposto de 140% ao entrar nos Estados Unidos.

Entretanto, Oliver Stuenkel, cientista político da Fundação Getúlio Vargas e especialista em relações internacionais, avalia que, em plena campanha, Trump não deve dar nenhum passo que desagrade ao seu público interno.

"Aqueles que defendem o fortalecimento da relação bilateral com os Estados Unidos podem argumentar que o Brasil optou por ceder neste momento porque espera ganhar em um outro momento posterior. Porém, olhando os últimos anos, pouco sugere que o governo Trump estaria disposto a fazer grandes cessões, sobretudo porque o eleitorado rural, fundamental para a reeleição de Trump, vê o Brasil como um concorrente", explica o professor.

Guerra comercial com a China

Já a sucessão no BID representa mais um capítulo na guerra comercial entre Estados Unidos e China - a maior parceira comercial do Brasil. A indicação de Mauricio Claver-Carone, conhecido pela linha dura nas sanções contra a Venezuela e Cuba, simboliza uma resposta de Trump ao avanço do comércio, dos investimentos e das tecnologias chinesas na região.

O assessor de Trump foi escolhido com o apoio de 16 países, entre eles o Brasil. Os demais, como Argentina, México e Chile, se abstiveram de votar, em protesto contra a nomeação de um americano.

"O BID sempre foi presidido por um latinoamericano e essa era a vez do Brasil, mas o Brasil aceitou retirar o seu candidato e apoiar o americano. Nesse caso, tem uma questão ainda mais complicada que é o Brasil aceitar a importação e tomar partido na confrontação entre China e Estados Unidos aqui na região", frisa Rubens Barbosa. "É outro fator que não interessa ao Brasil, ter uma espécie de Guerra Fria por aqui, de novo. A nomeação desse assessor do Trump vai politizar os empréstimos que forem pedidos pelos países da região", observa o diplomata.

Falta de apoio na América Latina

O temor é de que os projetos de países não alinhados aos Estados Unidos ou favoráveis à China sejam prejudicados a partir de agora. O mandato de Claver-Carone no BID é de cinco anos. O Brasil espera emplacar a vice-presidência do órgão, com sede em Washington.

O BID financia projetos de desenvolvimento econômico e social na América Latina e no Caribe, além de promover a integração comercial na região. A ajuda será primordial neste momento de grave crise econômica pela pandemia de coronavírus.

Para Oliver Stuenkel, Brasília fracassou em reunir apoio político dos vizinhos para o seu candidato à liderança do organismo. "O Brasil, hoje, tem uma baixíssima capacidade de liderar na região, embora a maioria dos governos da América Latina hoje seja de centro-direita. Ou seja, não é Bolsonaro contra governos de esquerda", ressalta o pesquisador dos países emergentes.

"Ele não deveria estar isolado na região e a sua capacidade de articular uma visão crível e interessante para os outros países é muito pequena. Com quase dois anos de presidência Bolsonaro, ninguém sabe qual é a visão brasileira para a América Latina. Ou seja, basicamente o país perdeu qualquer legitimidade para falar em nome da região, embora concentre a 50% da população, do território e do PIB sul-americano", lembra Stuenkel.

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