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Os cadáveres da Covid-19: Estados devem garantir ritual funerário às famílias, diz CIDH

20/05/2020 15h06

Dadas as anomalias ocorridas na região com os corpos dos que morreram durante esta pandemia, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) insta os Estados a preservar a memória dos mortos e a garantir o direito à verdade, justiça e reparação dos parentes dos que perderam a vida vítimas da Covid-19.

Por Angélica Pérez

A CIDH lembra a seus Estados-membros que eles são obrigados a garantir a celebração dos ritos funerários de acordo com os costumes e crenças das famílias, bem como a garantir a identificação dos mortos, a rastreabilidade dos corpos e a investigar possíveis mortes ilícitas que possam ser disfarçadas entre os óbitos propovados pelo coronavírus.

Onde estão?

No início de maio, o roubo de um cadáver foi manchete na Colômbia. O vídeo transmitido pela mídia mostra um jovem e duas mulheres vestidas de luto carregando um caixão até a porta da frente de um hospital e conseguindo retirar um corpo sem que o guarda intervenha para impedi-los. Em meio aos lamentos, eles correm pelas ruas lotadas enquanto arrastam o caixão.

Essa história ocorreu na cidade mais pobre do país, Quibdó, capital de Chocó, departamento condenado à corrupção, miséria endêmica e abandono do Estado. O roubo desse cadáver é uma sátira triste e cruel da crise hospitalar que o departamento colombiano enfrenta, onde existem apenas 27 unidades de terapia intensiva para cuidar de 544.764 habitantes.

Os membros da família decidiram sequestrar o ente falecido "violando os protocolos de biossegurança" como expressão de desespero e rebelião contra uma institucionalidade que já estava morrendo e que a pandemia da Covid-19 deu o golpe de graça.

É uma crise institucional que arrastava os países da região, mas que se alargou com a chegada do vírus: hospitais saturados de doentes e mortos e serviços funerários em colapso transformaram para muitas famílias o enterro de seus mortos em um pesadelo fatal kafkiano.

Cenas macabras em Guayaquil

O cenário mais dramático acontece na cidade equatoriana de Guayaquil, onde parentes procuram desesperadamente o corpo de seus entes queridos mortos em centros hospitalares. Pilhas de cadáveres descobertos em contêineres colocaram os hospitais de Guayaquil na mira da justiça.

Famílias que, diante da sobrecarga funerária e do medo de contágio, são forçadas a levar o caixão com o falecido para a rua. "A sobrecarga das instituições sanitárias, forenses e funerárias levou alguns países a modificar suas regras e protocolos de registro e manuseio de cadáveres para evitar a propagação do vírus, acelerando o enterro ou a incineração de corpos", dizem defensores de direitos humanos.

"Mas essas medidas podem violar os direitos dos familiares de pessoas que morreram na pandemia", alerta a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

"Quando não são adotados processos apropriados que permitam identificar os mortos ou rastrear onde eles estão enterrados, é difícil para os familiares conhecerem o destino dos mortos e viverem em paz seu processo de luto", diz Antonia Urrejola, relatora pela Memoria, Justicia y Verdad e vice-presidente da CIDH, em entrevista à RFI.

RFI: Quais são as outras situações às quais as famílias dos mortos por coronavírus estão sujeitas?

Antonia Urrejola: A Comissão recebeu denúncias de situações muito complexas sobre esse assunto em países como Brasil ou Equador. Em Guayaquil, especificamente, as dificuldades em acompanhar e localizar os restos daqueles que morreram em ambiente hospitalar podem levar até 20 dias. Vemos com grande consternação as dificuldades que as famílias enfrentam ao mover, cremar ou enterrar seus mortos da pandemia. Também sabemos que em Manaus, no Brasil, fala-se da possibilidade de fazer mais valas comuns, e cremar corpos.

RFI: Que impacto pode nas pessoas a renuncia ao ritual essencial que marca a fronteira do ser humano. Ou seja, quando eles não podem tocar seus entes queridos e enterrá-los de acordo com seus ritos, costumes e crenças?

Antonia Urrejola: A importância do processo de luto e a realização de ritos funerários de acordo com os costumes e crenças das famílias foram reconhecidas no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Em diferentes casos, a CIDH determinou que impedir que as famílias soubessem o que aconteceu com os restos mortais de seus parentes e se despedir deles geraria sentimentos profundos que constituíam uma violação da integridade pessoal dos membros da família. Esse é um tópico que foi desenvolvido no sistema interamericano relacionado principalmente a casos de desaparecimentos forçados e à impossibilidade de luto, mas isso também é aplicável quando as pessoas não têm permissão para identificar seus parentes ou saber onde foram enterrados.

RFI: Em circunstâncias tão anômalas em que os mortos não aparecem e o ritual fúnebre não ocorre, o que acontece com a relação entre luto e memória?

Antonia Urrejola: A ex-juíza da Corte Interamericana de Direitos Humanos Cançado Trindade, em sua votação sobre Bámaca Velásquez, apontou o seguinte, que acredito que responde muito bem à sua pergunta: "O respeito pelos restos mortais preserva tanto a memória dos mortos como os sentimentos dos vivos; em particular seus parentes ou pessoas mais próximas a ele, ligadas por laços de afeto, sendo este o valor legalmente protegido". Ao proteger o respeito pelos mortos, o direito penal também dá expressão concreta a um sentimento universal de consciência humana. O respeito pela memória dos mortos nas pessoas dos vivos constitui um dos aspectos da solidariedade humana que liga os vivos àqueles que já morreram. O respeito pelos restos mortais também se deve ao espírito que incentivou o falecido na vida, relacionado, além disso, às crenças dos sobreviventes em relação ao destino post mortem do falecido.

RFI: Você poderia comparar os casos em que o rastro do falecido se perde dentro de um hospital ou centro geriátrico com o drama de famílias latino-americanas que tiveram que suportar o desaparecimento forçado de um ente querido?

Antonia Urrejola: Eu não diria que o desaparecimento forçado no sentido dos padrões internacionais ocorre adequadamente nesses casos, mas há uma obrigação por parte dos Estados de impedir que as pessoas desapareçam. Nesse sentido, se a estrutura institucional não identificar o falecido e não houver rastreabilidade quanto às causas das mortes e ao local onde essas pessoas foram enterradas, pode ser que os familiares que não sabem que seus entes queridos estejam doentes não venham a saber que morreram e qual foi o destino dos restos mortais. Neste exemplo, podemos eventualmente enfrentar um desaparecimento forçado devido à omissão por parte do Estado.

RFI: A Comissão faz uma referência especial aos casos em que a devida investigação não foi realizada em caso de mortes potencialmente ilegais. A que especificamente você está se referindo?

Antonia Urrejola: Quando falamos de potencialmente ilegal, destacamos que, embora entendamos que as instituições encarregadas da identificação dos cadáveres possam estar sobrecarregadas atualmente, é essencial identificar o falecido, ter autópsias e atestados médicos que credenciam a causa de morte porque, com isso, eventualmente, os crimes podem ser encobertos. Soubemos pela imprensa que uma família de El Salvador, notificada de que seu parente morreu de coronavírus, finalmente conseguiu ver o corpo e a pessoa tinha sinais de tortura e, além disso, foi algemada. De El Salvador, recebemos três queixas semelhantes da sociedade civil. Portanto, o fundamental não é apenas a identificação do falecido, mas também a causa de sua morte, para evitar, precisamente, que após essas mortes por contágio, haja crimes.

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