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Touradas na Espanha e intrigas em Londres: a carreira diplomática de João Cabral de Melo Neto

André Bernardo - Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

11/01/2020 08h51

Ao longo de 45 anos no Itamaraty, o autor de 'Morte e Vida Severina' serviu em 14 cidades em três continentes.

Para quem tinha medo de voar, até que João Cabral de Melo Neto viajou muito.

Ao longo de sua carreira diplomática, que durou de 1945 a 1990, quando se aposentou, o poeta pernambucano morou em 14 cidades: Barcelona, Londres, Brasília, Sevilha, Marselha, Madri, Genebra, Berna, Assunção, Dacar, Quito, Tegucigalpa, Porto e Rio de Janeiro.

Sempre que tinha que alçar voo, o autor de Morte e Vida Severina (1955), que faria 100 anos nesta quinta-feira (9), tomava algumas precauções. Uma delas era embarcar sozinho. Primeiro, viajava o poeta; depois, a família.

"Segundo ele, morreria num desastre de avião", relata a escritora, cineasta e tradutora Inez Cabral no livro A Literatura como Turismo (2016), antologia que mescla os versos do pai com as memórias da filha. A outra técnica de enfrentamento era só entrar no avião depois de tomar umas doses de uísque para relaxar.

João Cabral de Melo Neto tinha 25 anos quando ingressou no Itamaraty. Para passar no exame do Instituto Rio Branco, estudou com o filólogo Antônio Houaiss, com quem dividia um apartamento no Rio. Como a grana era curta, aprendeu francês, inglês e espanhol por conta própria, lendo muito.

"João Cabral optou pela carreira diplomática por comodidade: ela lhe deu segurança financeira, estabilidade emocional e tempo para escrever", explica o jornalista José Castello, que levou 30 horas de entrevistas, entre os dias 7 de março de 1991 e 6 de abril de 1992, para coletar depoimentos do poeta para a biografia O Homem Sem Alma (1996).

Em 1947, quando lhe perguntaram onde gostaria de servir, João Cabral não titubeou: Espanha. Embora não gostasse muito de música ? desde criança, sempre fora desafinado! ?, era um apaixonado por flamenco.

Na primeira de suas quatro temporadas na Espanha, viveu por três anos, como vice-cônsul em Barcelona. Por causa do clima desértico ? "cinquenta graus à sombra no verão", registra a filha no autobiográfico O Que Vem Ao Caso (2018) ?, gostava de armar a rede no quintal para tirar cochilos.

Um de seus passatempos favoritos era assistir às touradas. "O poeta é como o toureiro", comparou, certa vez. "Precisa viver medindo forças com a morte, ou não vive".

Foi nessa época, enquanto morava na Catalunha, que o poeta pernambucano, então com 27 anos, conheceu e tornou-se amigo de Joan Miró, de 54.

"Por meio de sua inteligência estética, conquistou a amizade de um dos maiores artistas catalães de todos os tempos. Na ocasião, Miró já era um pintor consagrado e vivia perseguido por Franco e sua milícia", relata Valéria Lamego, doutora em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e organizadora do livro Joan Miró (2018).

"Traidores no Itamarati"

Em 1950, João Cabral foi transferido para Londres. Lá, gostava de ler os poemas de Dylan Thomas, curtir os filmes de Alfred Hitchcock e assistir aos jogos do Chelsea.

"O clima londrino não recomenda a vida ao ar livre", observa Castello. "O trânsito é lento, as calçadas, estreitas e o frio, intenso".

Certa vez, um de seus poemas foi traduzido para o inglês, pela escritora americana Elizabeth Bishop. O poeta nem se deu ao trabalho de conferir o resultado: "Escrevo para ser lido em português. Em português, não. Em nordestino".

Ele estava em Londres quando foi acusado de subversão, em 1952. O episódio teve início quando enviou uma carta a outro diplomata, Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, lotado em Hamburgo, na Alemanha, encomendando um artigo para ser publicado em uma revista do Partido Trabalhista Inglês.

A correspondência foi interceptada por um terceiro diplomata que, desconfiado da existência de uma célula comunista no Itamaraty, enviou uma cópia da carta ao Estado-Maior do Exército e outra para o jornalista Carlos Lacerda, que publicou a denúncia na edição do dia 27 de junho do jornal Tribuna da Imprensa. "Traidores no Itamarati", estampava a manchete.

Passado algum tempo, João Cabral foi convocado para responder a um inquérito no Brasil e colocado em disponibilidade, sem direito a vencimentos, por suposto envolvimento com o comunismo. No Rio, chegou a prestar um depoimento à polícia que durou seis horas.

"Por mais de uma vez, João Cabral admitiu que se considerava não só um materialista, mas um marxista. Publicamente, ele evitava falar disso, para que sua obra não fosse distorcida pelo preconceito político. Mas poemas como Morte e Vida Severina demonstram, por si, as preocupações sociais de João Cabral e sua compaixão pelos miseráveis", afirma Castello.

Afastado de suas funções diplomáticas, João Cabral passou a trabalhar nos jornais Última Hora, de Samuel Wainer, e A Vanguarda, de Joel Silveira, onde redigia de editoriais a obituários, para sobreviver.

"Naquela época, a provisão familiar ficava a cargo majoritariamente do marido. Ficar sem salário por algo em torno de dois anos para um marido e pai de três filhos não tinha como ser uma experiência trivial", afirma Éverton Barbosa Correia, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).

Inconformado, o poeta impetrou, em dezembro de 1953, um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a anulação da sentença.

Enquanto não saía um veredicto, diversos amigos, entre eles o poeta Lêdo Ivo e dom Hélder Câmara, intercederam junto às autoridades civis e militares. Em vão. O poeta só foi reintegrado à carreira diplomática, por decisão do STF, em 1954.

"Sem o intuito de amenizar as consequências que tal perseguição gerou na vida de João Cabral, não se pode negar que, ironicamente, foi um período profícuo", diz Ednéia Rodrigues Ribeiro, doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora do artigo O Homem, O Poeta, As Viagens (2017).

"Durante sua temporada no Recife, estreitou laços com Ariano Suassuna e, segundo o escritor paraibano, os dois colaboraram mutuamente: João Cabral em O Auto da Compadecida e Suassuna em Morte e Vida Severina".

"Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida..."

Em 1956, João Cabral foi transferido para Barcelona e Sevilha e, em 1958, para Marselha. Na cidade mais antiga da França, ficou encantado ao conhecer o Château d'If, onde Edmond Dantès, o protagonista do romance O Conde de Monte Cristo (1844), de Alexandre Dumas, cumprira pena.

"Ao longo de sua vida, João Cabral manteve uma intensa troca de correspondência com outros escritores, como Manuel Bandeira, Lêdo Ivo e Clarice Lispector. Certa vez, confidenciou à autora de A Hora da Estrela (1977): 'Marselha é uma droga! Estou, para ser franco, achando difícil me acostumar à ausência de Sevilha'", afirma Nylcéa Pedra, doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Em 1962, foi transferido para Sevilha, sua cidade favorita. Pelo menos uma vez por mês, gostava de rever o amigo Rubem Braga, então embaixador em Rabat, a capital do Marrocos, no porto de Tânger, no estreito de Gibraltar. "Sevilha foi o posto diplomático que mais me impressionou e onde sempre me senti em casa", confessou o poeta em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (1996).

Dois anos depois, João Cabral foi nomeado conselheiro para a Delegação do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e passou a morar em Genebra, na Suíça. O frio o incomodava tanto que o termostato de sua casa ficava regulado para trinta graus. "Usávamos roupas de verão dentro de casa e, ao sair, tínhamos que nos vestir com casacos, meias e luvas. Não sei como não morremos de pneumonia", diz Inez Cabral.

Um dia, João Cabral recebeu a visita do também poeta e diplomata Vinícius de Moraes. Lá pelas tantas, Vinícius pegou seu violão e, para tristeza do anfitrião, começou a dedilhar uma de suas canções. "Me desculpe, Vinícius", interrompeu João. "Mas por que todas as tuas músicas falam de coração? Será que você não tem outra víscera para cantar?"

"Pois é, João, você continua o mesmo nordestino seco", rebateu Vinícius. "Mas, um dia, ainda hei de colocar música em um desses teus poemas de cabra."

"Havia grande respeito e admiração entre os dois. Foi Cabral quem sugeriu o título da peça Orfeu da Conceição, de Vinícius. A ideia era aproximar o mito grego das favelas cariocas. Além disso, quando Vinícius perdeu o terceiro ato da peça, durante uma viagem aos EUA, em 1950, Cabral incentivou o amigo a reescrevê-lo", diz Roniere Menezes, doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de O Traço, A Letra e A Bossa: Arte e Diplomacia em Cabral, Rosa e Vinícius (2011).

"Você sabe do que morreu Manuel Bandeira?"

João Cabral não passou muito tempo em Genebra. Em 1966, foi nomeado ministro-conselheiro em Berna, a pouco mais de 157 km de distância.

Avesso a festas, jantares e coquetéis, desenvolveu uma tática para fugir dos convites: quando era para um evento sem lugar marcado, aceitava, mas não ia. Como ninguém o conhecia, pensava, ninguém daria por sua falta. Mas, quando o convite era para almoço ou jantar com lugar marcado, inventava uma desculpa qualquer para não comparecer.

Se estivesse vivo, como reagiria João Cabral de Melo Neto às comemorações de seu centenário? Provavelmente, odiaria. "Sabe do que morreu Manuel Bandeira, meu primo? De homenagem. Quando fez 80 anos, foi tão homenageado que não saiu mais da cama", disse, em 1996.

Inez confirma a aversão do pai a efemérides. "Ele odiava homenagens, mesmo quando era mais jovem, imagina agora. Seu repertório de mentiras para fugir delas ia se esgotar."

Em 1969, já eleito por unanimidade para ocupar a cadeira nº 37, que pertenceu a Assis Chateaubriand, na Academia Brasileira de Letras (ABL), João Cabral foi transferido para a embaixada em Assunção, no Paraguai, onde permaneceu até 1972. Naquele ano, foi nomeado embaixador em Dacar, no Senegal.

No continente africano, acumulou os cargos de embaixador em Nouakchott, na Mauritânia; em Bamako, no Mali, e em Conacry, na Guiné. Um dos costumes locais que mais o intrigou foi a poligamia. Por lei, cada homem senegalês tinha direito a se casar com quatro mulheres. "Jamais entendi a razão do número quatro", disse.

Em 1979, João Cabral viveu o período mais conturbado de sua carreira diplomática. Foi em Quito, no Equador. O país declarou guerra ao Peru por disputas territoriais e o Itamaraty criou uma comissão de cinco países ? Brasil, Equador, Peru, Colômbia e EUA ? para negociar um armistício. "Com essa história de paz, não tenho mais paz", confidenciou a amigos.

Para piorar, a altitude de Quito, 2.850 metros acima do nível do mar, causava sangramentos no nariz que o obrigaram a ligar para o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, ministro das Relações Exteriores durante o governo Figueiredo, e solicitar transferência.

Na década de 1980, morou em Tegucigalpa, em Honduras, em 1981, e no Porto, em Portugal, em 1982. Na capital hondurenha, João Cabral e Durval Carvalho de Barros, seu assessor, fizeram um pacto: não conversar sobre poesia pela manhã. O objetivo era um só ? se concentrar no trabalho diplomático!

"O inusitado era que, embora eu tentasse cumprir à risca o compromisso, o embaixador era quem, muitas vezes, transgredia e, na sobra de algum tempo livre, levantava algum assunto relacionado com arte, literatura ou poesia", recorda Durval, que conheceu João Cabral em 1980, em Brasília, e trabalhou com ele nos dois anos seguintes.

Em 1987, foi removido para o Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, no dia 9 de outubro de 1999, aos 79 anos. "Se eu não tivesse sido diplomata", costumava repetir, "minha literatura teria sido completamente diferente".

"O fato de passar mais da metade de sua vida em diferentes países foi decisivo para o tipo de literatura que produziu. Todos esses lugares, em maior ou menor proporção, estão presentes na sua poesia, retratados por meio de suas paisagens, culturas e tradições", afirma Edneia Rodrigues Ribeiro.

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