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Com cortes, saúde mental do Rio tem falta de remédios e profissionais

Manifestação de pacientes nesta semana por melhores condições em unidades da rede pública de saúde mental no Rio - Reprodução
Manifestação de pacientes nesta semana por melhores condições em unidades da rede pública de saúde mental no Rio Imagem: Reprodução
do UOL

Igor Mello

Do UOL, no Rio

03/08/2019 04h00

Atingidos em cheio por cortes de verbas da prefeitura e falta de repasses federais, os pacientes da rede pública municipal de saúde mental do Rio convivem com falta de medicamentos, equipes de profissionais desfalcadas e estrutura cada vez mais precária nas unidades. Desde que assumiu, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) cortou quase 30% dos recursos para atenção psicossocial na cidade.

Os problemas no tratamento especializado para pacientes com transtornos mentais voltou aos holofotes por conta de uma tragédia: no último domingo (28), o morador de rua Plácido Correa de Moura, aparentemente em surto, esfaqueou três pessoas na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul da cidade. Duas delas morreram: o engenheiro eletricista João Feliz de Carvalho Napoli e o professor Marcelo Henrique Correa Cisneiros Reis.

Um cruzamento de dados feito pelo UOL com base em informações do Rio Transparente, portal de dados públicos da prefeitura, mostra que, desde que assumiu, Crivella reduziu as verbas para a atenção psicossocial em 28,5%. Foram gastos R$ 56,5 milhões na área em 2016, último ano da gestão Eduardo Paes, enquanto em 2018 os repasses caíram para R$ 40,4 milhões. E a trajetória de cortes continua: até o fim de julho, a prefeitura só gastou R$ 20,4 milhões.

A SMS (Secretaria Municipal de Saúde) afirma que "nenhum serviço tem funcionado com equipe inferior à equipe mínima prevista em portaria. Conforme consta no atual Plano Plurianual (PPA 2018-2021), há planejamento para mais CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] na cidade e de conversão de CAPS existentes em CAPS III (24 horas), com ampliação das equipes".

Além dos cortes promovidos pelo município, o problema é agravado pelo governo federal. Dados da Coordenação Estadual de Saúde obtidos pelo deputado estadual Flávio Serafini (PSOL), presidente Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), mostram que o Ministério da Saúde vem deixando de ajudar no custeio de 15 unidades de saúde mental na capital habilitadas pela própria pasta para receber recursos federais. Em todo o estado, o quadro chega a 30 unidades --todas elas deveriam receber mais de R$ 8 milhões por ano.

Para Serafini, a situação vem expulsando os pacientes que deveriam ser tratados nas unidades.

"O Rio tem um problema grave porque, ao mesmo tempo que a prefeitura corta verbas, o Ministério da Saúde muda sua atuação, deixando a rede com ainda menos recursos. Faltam medicamentos, comida e profissionais nas unidades. Isso piora o tratamento e joga o usuário para a rua sem atendimento", critica.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou sobre a falta de repasses.

A defensora pública Gislaine Kepe, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio, diz que a rede do Rio passa hoje por um momento crítico.

"Ela está sendo desmoronada, para dizer a verdade. Não tem investimento, os poucos recursos estão sendo colocados nas comunidades terapêuticas, que fogem ao perfil do SUS. Pessoas com transtorno mental têm pouco acesso aos Caps, porque muitos não têm as equipes completas. As instalações com infiltrações, mofo. E muitas não têm sequer telefone, papel ou impressora", destaca.

No caso especificamente da população em situação de rua, a prefeitura mantém equipes do programa Consultório na Rua para prestar atendimento psicossocial. Porém, hoje a cidade tem apenas sete equipes, divididas por região. A região da Lagoa, onde Plácido morava, não é atendida por nenhuma delas.

A SMS argumenta que "são sete equipes credenciadas junto ao Ministério da Saúde especificamente como Consultório na Rua, mas independentemente deste credenciamento, todas as equipes da Estratégia Saúde da Família estão aptas para o atendimento das pessoas em situação de rua nos respectivos territórios".

Falta de remédios e profissionais

Parentes de usuários da rede de saúde mental ouvidos pelo UOL relatam que os cortes e mudanças na gestão de unidades, com a troca de OSs (Organizações Sociais) têm prejudicado os tratamentos. É o caso de Rosimary da Silva Cordeiro Gonçalves, que depende do Caps Pequeno Hans, em Sulacap (zona oeste), para o atendimento de sua filha de dez anos. A menina é acompanhada há quatro anos na unidade para tratar um quadro de autismo, transtorno global de desenvolvimento e déficit de atenção.

Segundo Rosimary, que integra uma associação de familiares e usuários da rede de saúde mental, o quadro dramático nas unidades tem gerado prejuízos no atendimento dos pacientes e regressão nos quadros clínicos.

"Eles estão tirando os profissionais e não estão repondo. Está faltando medicação em vários Caps, tem alguns que estão caindo aos pedaços. No Pequeno Hans, tem uma árvore caindo em cima da estrutura, já fizemos um monte de reclamações na ouvidoria. Só vão fazer alguma coisa quando acontecer uma desgraça", denuncia.

O UOL obteve uma lista de medicamentos em falta no Caps Eliza Santa Roza, na Taquara (zona oeste). Os estoques estão vazios para remédios importantes: o Levozine 25 mg, usado para tratar pacientes psicóticos e para aliviar ansiedade, delírio e confusão; Diazepam de 5 mg e 10 mg, usado em tratamento de transtornos de ansiedade; Carbolitium 300 mg , usado no tratamento de episódios maníacos nos transtornos bipolares; e o Haldol 5 mg , receitado para quadros de delírios, alucinações e confusão.

Uma parente de paciente, que pediu para não ser identificada por temer represálias, diz que a falta de remédios é tão frequente que as famílias desenvolveram estratégias para não interromper os tratamentos.

"As famílias têm que fazer como se fosse um banco de remédios. E uma família que tem o remédio dá para quem não tem. Independentemente do transtorno psiquiátrico, o paciente não pode interromper a medicação porque pode entrar em surto", conta.

A SMS admite apenas que estão em falta o Diazepam 5 mg e o Carbolitium 300 mg. De acordo com a pasta, os medicamentos estão em processo de compra. No caso dos demais, a secretaria diz que "eventuais faltas desses medicamentos nas unidades são casos pontuais e a reposição é feita assim que solicitada pelo farmacêutico da unidade".

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