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Mudança climática faz mar engolir arquipélago panamenho de San Blas

20/06/2019 06h02

María M. Mur.

San Blas (Panamá), 20 jun (EFE).- Às 9 horas da manhã, três mulheres guna, a etnia indígena que habita o arquipélago de San Blas, no Caribe panamenho, tentam secar com areia o bolsão d'água em volta de casa na ilha de Sugdub Gardi.

A chuva não teve clemência e as ondas ultrapassaram as rudimentares barreiras de coral que os guna construíram anos atrás para proteger essa ilhota do aumento do nível do mar, um lugar plano e de apenas um hectare e meio de extensão. Agora, a maioria das vielas está tomada pela lama e a água chegou a entrar em várias cabanas, feitas de paredes de junco e teto de palha.

Isso era típico em novembro, o mês dos temporais por excelência no Panamá, mas há um tempo está se tornando cada vez mais habitual em outras épocas do ano: o calendário de chuvas deixou de existir e o mar não para de crescer.

"Antes, o mar quase não entrava, mas agora qualquer chuva nos afeta porque estamos afundando. Não é preciso ser cientista para perceber", disse à Agência Efe Pablo Preciado, o sagla (ou líder espiritual da comunidade) dessa região.

"Há dias que o mar entra pelos dois extremos da ilha e a água de um lado se junta com a do outro", acrescentou María Armas, uma professora do povoado, que não tem água potável e a eletricidade só funciona por algumas horas à noite.

PREJUÍZO IRREVERSÍVEL

San Blas, o turístico arquipélago de águas transparentes que pertence a Sugdub Gardi e que, por sua vez, faz parte da comarca Guna Yala, é uma das áreas mais prejudicadas da América Latina pelo aumento do nível dos oceanos, uma consequência direta do aquecimento global e do degelo dos polos.

Com base em dados de um mareógrafo instalado nas proximidades do arquipélago, a água nesta parte do Caribe subiu cerca de 30 centímetros no último 50 anos, 11 centímetros a mais do que a média mundial. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vinculado à Organização das Nações Unidas indicou no seu quinto relatório, publicado em 2014, um cenário desolador e alertou que, se continuar assim, o aumento médio dos oceanos poderia ser de até 30 centímetros em 2065 e de 55 centímetros em 2100, o arruinaria várias comunidades perto do mar.

"A natureza está zangada e está mandando um recado. Essas fábricas que jogam tanta fumaça são as culpadas", disse o sagla, que lembra bem das terríveis inundações que assolaram a ilha no fim de 2008.

Um estudo elaborado em 2004 a partir de imagens aéreas publicadas pela revista "Conservation Biology" afirma que o arquipélago, formado por 365 ilhas - sendo 38 habitadas e as demais usadas para fins de turismo - perdeu em 50.363 metros quadrados em 30 anos. Sugdub Gardi, Ustupu, Mamidub, Anassuguna e Ogobsucun são as comunidades que correm mais riscos atualmente, segundo os especialistas. Mas o futuro não é nada simples para as outras ilhas e seus habitantes sabem disso. As autoridades panamenhas, também.

"Dadas as caraterísticas geográficas das ilhas é possível que muitas fiquem submersas em algumas décadas", reconheceu à Efe, em uma declaração por escrito, o ministro do Ambiente do Panamá, Emilio Sempris.

FAZER AS MALAS É A ÚNICA SOLUÇÃO

Recostado em uma colorida rede, um objeto fundamental em qualquer casa guna, Eustasio Valdés resumiu o que grande parte dos moradores do arquipélago sente.

"Não existe outra opção. Temos que ir embora. O que acontece se uma tromba d'água nos surpreende à noite e inunda tudo na escuridão?", questionou ele, uma espécie de filósofo ambiental, que nos últimos anos se encarrega de explicar à comunidade que o remédio é pior do que a doença e que os corais não podem ser arrancados para construir diques porque os arrecifes servem de barreira natural contra as ressacas.

Cientes que o mar vai acabar se transformando em inimigo voraz e incontrolável, a comunidade de Sugdub Gardi iniciou em 2010 um pioneiro plano de mudança rumo à terra firme que evoluiu a passos lentos e que parece que agora finalmente está se concretizando. Os moradores se acomodaram em um terreno de 17 hectares no continente, a poucos quilômetros da ilha e de propriedade da comarca, e convenceram o governo a erguer um centro médico e uma escola no local.

Após anos sem avanços, há poucos meses, a primeira licitação para a construção de 300 casas foi feita. O plano está pendente de aprovação das autoridades e servirá de exemplo para caso outras comunidades queiram se mudar futuramente para o litoral.

De acordo com a ONG suíça Displacement Solutions, Sugdub Gardi será o primeiro povoado indígena da América Latina a ser desalojado pela mudança climática.

"O aumento do nível do mar é um monstro silencioso. Nós não sofremos grandes desastres, então não somos prioridade para as autoridades", lamentou Blas López, líder comunitário que faz parte do comitê que planejou a mudança e sabe o quanto custou desenvolver tal plano.

O abandono da ilha, que será totalmente voluntário, solucionará também outra dor de cabeça da comunidade: a superpopulação. Sugdub Gardi é pequena, as cabanas se aglomeram umas nas outras e a população não para de crescer. Cada casal tem em média cinco filhos e em cada cabana vivem cerca de 12 pessoas.

MUDANÇA DIFÍCIL

Os mais velhos são os mais resistentes a sair e os mais céticos aos estudos científicos que indicam o aumento do nível do mar.

"Estamos há 150 anos nestas ilhas. É impossível que a água nos leve", defendeu Dibtiginya Reyes, um veterano pescador.

Esta semana, porém, ele não conseguiu sair para pescar por causa da chuva e agora começa a pensar se poderá mesmo ficar no seu povoado.

Os guna, um dos povos indígenas com maior nível de autodeterminação na região e uma das sete etnias que vivem no Panamá, são originais das montanhas, de onde fugiram há um século e meio por causa de malária e febre amarela. Retornar para a floresta significa enfrentar alguns desafios de saúde que agora devem ser novamente encarados sabendo que o que deixam no arquipélago é um monstro contra o qual eles não podem lutar.

"Nossos avôs vieram às ilhas pensando em nós e nós temos que voltar à terra pelo bem dos nossos netos. Vamos fechar o círculo, vamos voltar à essência", concluiu o sagla, possivelmente a pessoa mais respeitada da comunidade. EFE

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