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"Memes garantem acesso ao debate", diz pesquisador da UFF

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Imagem: Getty Images

17/06/2019 13h24

Pesquisador da UFF que estuda a relação entre memes e política destaca o viés inclusivo dessa forma de comunicação. No cenário internacional, brasileiros se destacam por debochar da própria "desgraça".

No best-seller O Gene Egoísta, publicado em 1976, o biólogo Richard Dawkins apresentava ao grande público o termo "meme", criado por ele para se referir à replicação de ideias por gerações, tal como acontecia com o material genético. É certo que o cientista britânico não fazia ideia do alcance que a expressão ganharia décadas depois.

A popularização dos memes de internet na era cibernética mudou por completo o debate político. No Brasil, onde as redes sociais são uma febre, especula-se que essas peças simples de comunicação tenham tido mais importância do que a propaganda na televisão nas últimas eleições.

Atentos à importância que essa forma de expressão ganhava na sociedade, os pesquisadores do Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração (coLAB), da Universidade Federal Fluminense (UFF), criaram, em 2011, o #MUSEUdeMEMES, um acervo virtual para catalogar essas expressões. Recentemente, o grupo inaugurou a exposição A política dos memes e os memes da política, em cartaz no Museu da República, no Rio de Janeiro.

Em entrevista à DW Brasil, o coordenador do coLAB, Viktor Chagas, destrincha essa curiosa relação, que é seu objeto de pesquisa.

DW: O coLAB acaba de realizar um simpósio que teve a presença de pesquisadores estrangeiros. A enorme popularidade dos memes e seu uso político são particularidades brasileiras?

Viktor Chagas: Se, por um lado, é verdade que a gente tem uma série de particularidades em relação ao nosso humor, ao uso desses recursos, outras culturas também as têm. No caso dos memes que trabalham com humor nos EUA - e é importante dizer que nem todos têm esse viés -, há sempre aquela bandeira da liberdade de expressão, pela ideia de perder o amigo mas não perder a piada, mesmo que esse humor funcione a partir de uma dinâmica de opressão de minorias. O humor nos EUA tem muito essa característica. Na China, é bem diferente. Ante um contexto autoritário, muitos dos memes têm um certo caráter subversivo. A ideia é proporcionar alguns trocadilhos, burlar a censura estatal.

A mesma coisa acontece no Brasil, temos particularidades. Uma delas é brincar com a nossa desgraça. Especialmente quando nos referimos à política e à crise politica, o humor se apresenta como uma sátira da própria cultura politica brasileira. Muitos memes que trabalham com humor são caracterizados como piadas internas. Uma experiência que chamou muito a atenção dos pesquisadores estrangeiros são os ciclos de protestos que ficaram conhecidos como "vomitaços". É um protesto muito confrontativo, mas também, de certa maneira, carregado da dimensão da brincadeira. É claro que a gente tem uma cultura de memes efervescente, e isso se deve muito ao papel que as mídias sociais representam no Brasil, até de inclusão no debate político.

De que forma se dá essa inclusão?

Não me refiro exclusivamente à questão da classe social. Falo de médicos, engenheiros, pessoas com origem abastada que não participavam do debate político de forma tão intensa como agora. É um fenômeno muito mais amplo do que a entrada de camadas populares. Justamente por não terem tido acesso ao debate político facilmente, essas pessoas acabam sendo muito facilmente cooptadas por discussões com vieses muito particulares.

Os memes são artefatos culturais que constituem um gênero midiático próprio do ambiente digital. Por si só, eles não possuem uma função democratizante ou antidemocratizante. Mas podem, sim, ser acionados, mobilizados por grupos de interesse, no intuito de fomentar determinados debates.

Assim, mesmo que se ancorem em leituras rasas da realidade ou que se apoiem em estereótipos, eles podem, sim, estimular reflexões e favorecer uma perspectiva crítica à medida que garantem acesso ao debate. Eu diria que, no mais das vezes, os memes podem funcionar como o primeiro degrau para o debate qualificado, e, desse modo, estamos tratando de um dispositivo de letramento político importante, e que não deve ser menosprezado pelos movimentos sociais. Há quem encare os memes apenas como uma ferramenta de mistificação das massas, um gênero alienante. Quem enxerga o fenômeno desse modo está perdendo muitas camadas de significado.

DW: Você rechaça a ideia de que os memes constituem um "ativismo de sofá", tese defendida por alguns pesquisadores. Por quê?

Em um caso específico como o do vomitaço, tenho buscado provar que não é absolutamente nada desprezível terem sido registrados 540 mil "vômitos" nas páginas de Michel Temer e do MDB em um intervalo de 48h. No mínimo, isso gera um impacto político. Isso faz com que os próprios alvos se sintam incomodados a ponto de tentar barrar uma manifestação desse tipo, como o Temer tentou fazer.

É muito mais difícil conter uma manifestação virtual do que nas ruas, onde basta usar a polícia com seu aparato repressivo. No caso do vomitaço, travado numa plataforma privada, é muito mais difícil de conter. A resposta do Zuckerberg pro Temer diz que o caso dele é particular entre vários outros, e não era possível simplesmente censurar os stickers de vômito, uma vez que várias outras pessoas em diversos lugares fazem usos diferentes desse mesmo sticker.

O fato de a rede social ser uma plataforma privada funciona como uma espécie de defesa para esses grupos. O vomitaço não é um meme propriamente, mas constitui uma ação memética, com muitas pessoas replicando aquilo. Com esse exemplo, vemos que ações desse tipo não são absolutamente desprezíveis no âmbito político.

No contexto polarizado da política brasileira, algum lado tem usado os memes com maior eficiência?

A gente tem evidencias muito claras de que a direita se apropriou de uma forma muito mais eficaz do que a esquerda desses recursos. A primeira diz respeito a uma certa incorporação de estratégias que são alheias ao cenário brasileiro, em particular de táticas vindas dos EUA. Aquela dimensão do humor específica que eu mencionei anteriormente, do "perco o amigo mas não perco a piada", foi em grande medida importada para o Brasil.

Há essa ideia de que o antagonismo tem um papel muito importante na política, e de que é preciso não apenas rir junto com seu adversário, mas sobretudo esmagá-lo completamente a partir da piada. A sátira política serve como uma arma para vencer os inimigos.

Esse tipo de uso estratégico dos memes pela direita vem sendo muito mais eficaz do que pela esquerda. Isso se deve, em grande parte, à função que a esquerda cumpre do equilíbrio entre os contendores, com a prerrogativa da igualdade social e defesa das minorias.

Há toda uma preocupação dos grupos de esquerda no que diz respeito à dimensão da brincadeira politica. A esquerda leva sempre em consideração com quem se brinca, a quem está afetando, a que serve a brincadeira. Há um consentimento de que elas eventualmente não se constituem como brincadeiras para todo mundo.

Piadas machistas são entendidas como piadas apenas por pessoas que compartilham de um certo ideário, comportamento ou prática machista no seu dia a dia. Para a direita, isso não faz a menor diferença, o menor sentido, e predomina a ideia de que a piada é mais importante que qualquer coisa. Piada machista é piada, ainda que machista. Os memes feministas, ou do movimento negro, funcionam a partir de lógicas muito diferentes dos memes de direita.

É possível dizer que os memes contribuem para acirrar a polarização ideológica do país?

A gente vem observando um certo efeito adverso cultural, um reacionarismo em reação a uma esquerda que vem, nos últimos anos, crescendo em sua capacidade de expressar suas demandas. É o caso dos movimentos negro, LGBT, feminista, que ganharam fôlego justamente a partir das mídias sociais.

Os memes nada mais que refletem essa dinâmica, num jogo de memes e contramemes. Eles são a materialização desses ânimos, a conformação de um clima de opinião que não é uma exclusividade do ambiente digital. No fundo, já não dá mais para se falar numa separação entre online e offline. Memes de internet são caracterizados dessa forma pura e simplesmente porque são nativos do ambiente digital. Mas eles são, acima de tudo, memes.

Eles operam muito mais como sintoma da nossa realidade, na medida em que refletem esses ânimos, mas são de certa forma um sintoma que acaba catalisando ainda mais reações, porque plataformas sociais como o Twitter e o WhatsApp acabam favorecendo a conformação dessas identidades coletivas.

Basta pensar como o recurso da hashtag no Twitter acaba possibilitando que diferentes grupos identitários se reconheçam e busquem reconhecimento por meio de movimento em uníssono. É assim que operam os memes feministas, em campanhas como #MeuAmigoSecreto, #MeuPrimeiroAssédio, #MeToo. São ações impulsionadas eventualmente de forma individual, em um primeiro momento - algumas vezes de modo espontâneo, outras vezes estratégico -, e, em determinado momento, são reconhecidas como um movimento, um coletivo. Os memes são a expressão máxima dessa realidade, mas, sem dúvida, contribuem para catalisar novas realidades.

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