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Como armadilha de gelo fez com que cientistas caçassem partícula fantasma

do UOL

Fernando Cymbaluk

Do UOL, em São Paulo

17/02/2019 04h00

Para descobrir que os átomos não eram maciços como brigadeiros, e sim vazados como o Sistema Solar (o núcleo seria o Sol, os planetas seriam os elétrons), o físico Ernest Rutherford (1871-1937) realizou uma experiência engenhosa. Ele bombardeou uma fina lâmina de ouro com partículas emitidas por um elemento radioativo e viu que algumas passavam e outras eram rebatidas. Do experimento de Rutherford para cá, estruturas menores da matéria foram descobertas, e enxergar partículas elementares ficou mais complexo.

Uma delas, o neutrino, nunca seria rebatido pela lâmina de ouro, e aí reside um grande problema da ciência.

Sem carga elétrica e quase sem massa, ele atravessa astros e campos magnéticos sem se desviar, interagindo muito debilmente com a matéria.

Bilhões dessas "partículas fantasmas" varam a Terra (e nossos corpos) vindas do espaço a cada segundo. Para detectá-las, os cientistas criaram um experimento espantoso. Em um cubo de gelo de 1 km³, enterrado entre 1,5 km e 2,5 km de profundidade no coração da Antártida, eles instalaram 5.160 sensores que possuem o tamanho de holofotes de navio. 

Não foi nada fácil construir essa enorme engenhoca. O frio do polo Sul proíbe que se trabalhe no inverno, quando as temperaturas chegam a -80°C. Assim, foram necessários sete verões para os pesquisadores perfurarem e instrumentalizarem 86 poços de 60 centímetros de diâmetro que chegavam a 2.450 metros de profundidade -- ponto em que ficam os sensores que estão no pé do grande cubo de gelo.

Três anos após o Ice Cube ficar pronto e cem anos depois de Rutherford ter observado partículas alfa serem desviadas pelo núcleo dos átomos de sua lâmina, um neutrino passeando livremente foi flagrado no imenso cubo de gelo.

Mas por que os cientistas tentam observar neutrinos? E como um imenso cubo de gelo na Antártida fazem as partículas fantasmas ficarem visíveis?

O físico americano Francis Halzen, líder das pesquisas feitas no Ice Cube, esteve em São Paulo no final do ano passado, quando foi apresentado como o primeiro cientista a integrar o Comitê Internacional do Instituto Principia -- um centro brasileiro recém-inaugurado de produção e difusão científica ligado à Fundação Instituto de Física Teórica, entidade privada de pesquisa. Na ocasião, ele contou um pouco sobre bastidores da construção do Ice Cube e falou sobre a saga da ciência em sua caçada de neutrinos.

Flagrando um neutrino no cubo de gelo

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A busca pela origem dos raios cósmicos

"A busca [por neutrinos] faz parte de uma das maiores questões da física e da astronomia: qual é a origem dos raios cósmicos", disse Halzen na conversa com jornalistas da qual a reportagem do UOL participou.

A história dessa caçada remonta a uma experiência um tanto divertida, realizada no início do século 20. Intrigado com fenômenos de ionização observados na Terra, o físico Victor Franz Hess subiu aos céus em um balão levando sensores de radiação. Quanto mais subia, mais forte ficava a radiação captada. A conclusão do físico, que lhe rendeu o Nobel de Física de 1936, era a de que ela vinha do espaço.

Os neutrinos são um dos elementos dessa tempestade de partículas que atinge a Terra a todo instante -- os chamados raios cósmicos. Neutrinos também são produzidos no Sol e surgem em reatores nucleares e aceleradores de partículas na Terra. A diferença é que os que compõem os raios cósmicos, assim como prótons e elétrons dessa chuva, possuem as energias mais altas já observadas -- superiores a um milhão de vezes as alcançadas pelos aceleradores de partículas.

Tirando o neutrino, que passa por tudo e por isso é inofensivo, os demais componentes dos raios cósmicos oferecem grande risco a astronautas por serem altamente energizados. Eles desintegrarão toda a tintura e o estofado do veículo da Tesla enviado por Elon Musk para o espaço. Na Terra, estamos protegidos graças à atmosfera, que funciona como um escudo.

"Os cientistas têm procurado de onde essas partículas partem há mais de um século", lembra Halzen. "O Ice Cube foi construído para solucionar exatamente isso".

A epopeia na Antártida para caçar neutrinos

A maneira mais usual de entender o que existe em lugares longínquos do espaço é usando telescópios. Esses aparelhos permitem observar as ondas eletromagnéticas que alcançam a Terra de diferentes formas -- em luz visível, infravermelho, raios-x, ondas de rádio, etc. "A forma que temos para conhecer o Universo é detectando a radiação que chega do Universo", explica o físico americano. "Mas outros elementos que nos atingem chegam na forma de partículas", completa. Por isso, telescópios não servem para visualizar raios cósmicos, compostos por partículas.

Para rastrear os raios cósmicos, seria necessário estudar uma partícula específica que alcançasse a Terra e reconstituir a sua trajetória. O pequeníssimo e invisível neutrino, quem diria, é que contaria aos cientistas de onde veio. Diferentes experimentos já foram realizados para tentar flagrar neutrinos. Um deles, o Super-Kamiokande, construído no Japão em 1983, consiste numa piscina cilíndrica com 50 mil toneladas de água rodeada por 11.200 sensores de luz. Essa, contudo, foi uma experiência falha no objetivo de localizar fontes de neutrinos.

Outro experimento feito na década de 1990 demonstrou que o gelo extremamente claro da Antártida podia interagir com neutrinos. Uma armadilha ali instalada precisaria ser grande o suficiente para garantir a captura da "partícula fantasma". O neutrino não seria observado diretamente, mas a partir de partículas secundárias eletricamente carregadas que seriam produzidas quando ele atravessasse o gelo. Foi então concebido o Ice Cube.

De 2004 até 2011, os trabalhos se estendiam entre novembro e fevereiro no deserto de neve perto da estação Amundsen-Scott, quase no polo Sul geográfico. Para ganhar tempo e aproveitar bem a luz do Sol que nunca se põe nessa época, mais de 300 engenheiros, técnicos e cientistas se revezavam ao longo de 24 horas todos os dias. A neve compactada da superfície era furada com auxílio de uma broca. E o cubo de gelo do subsolo era derretido com jatos de água quente sob alta pressão. Os sensores precisavam ser instalados rapidamente nos poços, antes que a água voltasse a congelar.

A construção do Ice Cube contou com a colaboração de mais de 40 instituições de pesquisa de todo o mundo e o investimento de 279 milhões de dólares (cerca de R$ 1 bilhão), a maior parte feita pela Fundação Nacional de Ciências dos EUA. Em 2010, após usar 2,1 milhões de kg de carga levadas para a Antártida, as obras do Ice Cube chegaram ao fim em dezembro de 2010 -- "concluídas no prazo, dentro do orçamento e excedendo significativamente as especificações de desempenho", como diz relato do observatório.

No Ice Cube, é como se a Terra funcionasse como a "lente" do observatório de neutrinos. Se algo surgisse naquele cubo de gelo no subsolo da Antártida, só poderia ser fruto da passagem do neutrino, única partícula capaz de cruzar tudo tão tranquilamente. Também era importante saber exatamente o que havia no gelo. Qualquer interferência no momento da detecção de um neutrino precisaria ser compreendida. Halzen explica que supercomputadores radiografaram e mapearam cada grão de poeira ali congelado. Calibrada a armadilha, bastava esperar a presa aparecer.

A partícula flagrada que contou de onde veio

Em 2013, os caçadores de neutrinos liderados por Halzen observaram uma extraordinária luminosidade azul dentro do cubo de gelo. Tratava-se do efeito chamado Cherenkov, que ocorre quando uma partícula carregada eletricamente atravessa um meio como o gelo em velocidade superior à da luz nesse meio (no gelo, a luz pode se deslocar em velocidade mais baixa e inferior a de outros elementos). Essa radiação eletromagnética era fruto de muóns produzidos pela interação com o gelo de uma outra partícula que havia adentrado o cubo. Eureca! Um neutrino tinha passado por ali.

Os sensores do Ice Cube registraram todos os dados das ondas de luz geradas pela passagem do neutrino. E os computadores do laboratório traçaram as coordenadas da trajetória da "partícula fantasma" dentro do cubo. O que os cientistas tinham em mãos era a direção exata do neutrino que entrara na Terra. Mas nada mais do que isso. "Você vê os neutrinos cósmicos vindo do céu, mas ainda não sabe de onde estão vindo", conta Halzen sobre a alegria misturada com frustração da descoberta.

Mas e se, com a direção do neutrino em mãos, os cientistas pudessem olhar para o céu na tentativa de localizar o ponto de onde ele teria vindo, o que encontrariam? Afinal, a luz de estrelas e galáxias que vemos da Terra viaja na mesma velocidade do neutrino observado na Antártida -- a velocidade da luz.

A sacada final foi consultar dados de diferentes telescópios que estavam apontados para a trajetória do neutrino no céu no exato momento em que ele foi detectado no Ice Cube. E naquele instante os telescópios acabavam de registrar a explosão de um blazar -- objeto celestial que concentra grande quantidade de energia e que está associado a um buraco negro.

Novamente, eureca! A direção por onde chegavam os neutrinos na Terra no dia em que um deles deu o ar da graça e fez o cubo de gelo do Ice Cube brilhar era consistente com a posição do blazar TXS 0506+056, localizada a 4 bilhões de anos-luz da Terra.

Desde 2013, diversos neutrinos têm sido detectados no Ice Cube, e o laboratório tornou-se um dos mais promissores centros de pesquisa e de futuras descobertas nas mais diversas áreas ? há estudos em curso sobre astrofísica, glaciologia, tomografia da Terra, física quântica e partículas exóticas. Há a expectativa de que descobertas sobre a matéria escura possam vir do Ice Cube.

Quanto aos raios cósmicos e os neutrinos, Halzen ressalta que eles continuam atingindo a Terra a todo instante. E as diferentes fontes continuam desconhecidas. O que há de surpreendente então na saga da caçada de neutrinos, feita de experimentos que são fruto da engenhosidade da ciência? "A surpresa é que nós conseguimos solucionar o problema, e de uma maneira totalmente inesperada", diz Halzen. "Nós sabemos agora uma fonte de raios cósmicos".

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