Como Neymar pai influenciava Globo e rotina da seleção | podcast Neymar #4
A ascensão de Neymar Jr. depois da chegada ao Barcelona em 2013 foi meteórica. Ele se tornou peça-chave de um time que venceria a Liga dos Campeões, além de candidato a melhor jogador do mundo.
Na medida em que o craque cresceu, Neymar pai ganhou força nos bastidores, estabelecendo uma rede de influência baseada na imagem do filho que, de tão forte, afetava clube, seleção brasileira, o Grupo Globo e outros setores da imprensa.
Os bastidores dessa e de outras histórias são contados em "Abençoado", quarto episódio de "Neymar", novo podcast original UOL Prime que investiga a trajetória de Neymar Jr. e de seu pai, Neymar da Silva Santos.
O podcast terá seis episódios, que serão publicados sempre às terças no canal de YouTube do UOL Prime e em todas as plataformas de podcasts (Spotify, Apple Podcasts e Deezer) e às quartas no YouTube de UOL Esporte.
O podcast revela como Neymar pai construiu um império bilionário em torno do talento e da imagem do filho, fazendo dele não apenas um jogador de renome mundial, mas uma megacelebridade.
A virada na Europa
O episódio desta terça-feira mostra como Neymar pai aproveitou a ascensão do filho na Espanha para se tornar forte o suficiente para conseguir o que queria em negociações e conflitos com instituições poderosas.
Depois de uma primeira temporada de adaptação, Neymar decolou em seu segundo ano na Europa e se tornou peça-chave no Barcelona.
"Lembro de um Neymar imparável, um Neymar desequilibrante, um Neymar líder. Bom, a verdade é que, em nível pessoal e acredito que também em nível coletivo (...) como companheiro, foi um prazer ter compartilhado esses momentos com ele e também ter conseguido aproveitar nossa etapa no Barcelona em muitos momentos", conta a lenda barcelonista Andrés Iniesta, em declaração exclusiva ao UOL.
Em maio de 2015, o Barcelona chegou à final da Liga dos Campeões, diante da Juventus.
Antes do confronto, aconteceria o media day: uma rodada de entrevistas com os principais astros para promover o jogo.
O Barça escalou Neymar para a entrevista coletiva, mas recebeu do estafe do jogador um email inesperado: "Neymar não dará coletiva no dia 5", diz o texto, enviado pela assessoria.
A reação do clube é de pânico e cheia de dedos. "Ele não dará coletiva? Mas é a coletiva da final da Champions League, e tem grande repercussão? ele já tinha concordado".
A recusa não passava de um mal-entendido, e Neymar acabou participando do media day. A conversa, entretanto, é só um exemplo do que havia se tornado uma regra: o poderoso Barcelona precisava consultar Neymar pai para usar a imagem de seu próprio jogador na entrevista coletiva mais importante da temporada.
Neymar na seleção? Pergunte para o pai
Enquanto o Barcelona se organizava para a reta final da Liga dos Campeões, a seleção brasileira se preparava para a Copa América de 2015 - Neymar, claro, estava convocado.
Em 22 de maio, pouco menos de 20 dias antes do início da competição, o estafe de Neymar pai e a CBF fizeram uma reunião para definir as datas de entrevistas e aparições de Neymar.
Depois da conversa, tudo é submetido à aprovação de Neymar pai em um email enviado por sua assessoria.
"Bom dia! Hoje me reuni pelo Skype com o assessor da CBF, e alinhamos alguns assuntos referentes ao Neymar em termos de entrevistas e conteúdo para a CBF e NJR. Segue abaixo o que foi conversado e aguardo o feedback de vocês para fazer alguma observação ou pedido para tirar ou acrescentar nos assuntos. Por favor, em relação às coletivas, fast interview entre outras, verifiquem com Neymar pai e me digam o quanto antes para deixar confirmado".
O email submete à análise do pai do jogador as datas e ocasiões nas quais a seleção pretende utilizá-lo em entrevistas coletivas ou compromissos públicos, e põe em discussão a data de apresentação do craque e sua participação ou não em um amistoso preparatório.
Além disso, uma série de avisos mostra que, quando o assunto envolvia a imagem de Neymar, seu pai tinha influência e poder de decisão mesmo dentro da seleção brasileira.
"A equipe da CBF quer organizar alguns conteúdos para o YouTube durante a competição, como sempre fazem, e vão nos passar no caso do Neymar, antes de fazerem, para aprovação. Vamos criar um grupo no WhatsApp para a CBF enviar os layouts e posts a serem postados com o Neymar para aprovação e compartilhamento nas redes do NJR durante os treinos, jogos etc".
Ao final do email, um comunicado importante: a CBF avisa que passou a adotar "Neymar Jr." nas redes sociais e comunicações da seleção, e não mais chamará o atacante apenas de "Neymar". A mudança foi um pedido da NR Sports, empresa de Neymar pai.
A relação com a Globo e com a imprensa
Em 2014, Neymar pai fechou um contrato com a Globo. O acordo previa a hospedagem de um site com conteúdos de Neymar dentro da infraestrutura da empresa e participação do jogador em programas da emissora.
Documentos obtidos pela reportagem mostram, entretanto, que a relação ia além disso.
Havia uma proximidade grande entre o pai do atacante, o estafe da NR Sports e jornalistas da Globo. A relação, em diferentes ocasiões, envolvia discussões nos bastidores sobre o teor de conteúdos que seriam publicados sobre Neymar e seu entorno.
Em algumas dessas conversas, era oferecida a Neymar pai a possibilidade de alterar reportagens antes que fossem ao ar.
O UOL teve acesso a algumas dessas negociações. Em uma delas, em 2013, uma jornalista enviou uma matéria já pronta ao estafe do jogador, antes da publicação, para que ela fosse avaliada previamente.
Em outra, de 2015, o estafe de Neymar envia um vídeo para a publicação na Globo, mas combina com a emissora para que o conteúdo seja publicado como se tivesse sido enviado por um fã.
O caso mais emblemático aconteceu em julho de 2014. Apesar de enfrentar resistência, Neymar pai convence o filho a dar uma entrevista ao "Fantástico" depois da traumática eliminação do Brasil na Copa do Mundo.
Quando as primeiras chamadas sobre a entrevistas são publicadas dias antes do programa, ele se revolta e acusa a emissora de descumprir as condições.
"Convenci meu filho por pessoalmente considerar importante a entrevista em razão do 'momento', mas atendendo a um único pedido dele apresentamos uma condição 'inegociável'. Ele não queria falar sobre os bastidores e as derrotas da seleção brasileira na Copa do Mundo", diz, em um email.
"Esta condição não foi respeitada. Assistindo a entrevista (ela foi gravada na íntegra pela nossa equipe) posso garantir que com exceção da pergunta sobre seu namoro, TODA a entrevista girou em torno do assunto que o meu filho não queria abordar, o que me deixou extremamente surpreso. Resolvi não interferir pois como nos foi garantido a entrevista seria gravada e caso algum assunto, pergunta ou resposta não fosse considerada adequada poderíamos solicitar que fosse excluída", continua a mensagem. "Independentemente de tudo o que escrevi e relevei não posso concordar com o fato de vocês terem escolhido a declaração mais polêmica do meu filho para divulgar a matéria. Não concordo e não aceito. Estou pensando inclusive em pedir que não seja exibida a entrevista no Domingo porque não é este o tratamento que esperava."
A entrevista foi ao ar. Desta vez, a Globo não cedeu à pressão do pai de Neymar.
O UOL entrou em contato com a emissora e perguntou sobre o contrato com Neymar e sobre a atuação de Neymar pai junto ao conteúdo editorial de jornalistas da empresa.
"Globo e Neymar firmaram contrato em 2014, e que o contrato previa participações especiais de Neymar em programas e campanhas da emissora, bem como o uso de conteúdos audiovisuais produzidos pelo jogador.
Sobre sua pergunta com relação à interferência no jornalismo, o contrato nunca previu aprovação prévia de reportagens ou interferência em conteúdos editoriais. E vale ressaltar ainda que, independentemente do período em que o contrato esteve ativo, nunca houve qualquer tipo de interferência", diz a resposta enviada pelo departamento de comunicação a Globo.
As disputas comerciais impactavam a seleção
Além de controlar o uso da imagem de Neymar Jr., a influência de Neymar pai na agenda da seleção tinha um segundo objetivo: evitar conflitos envolvendo seus vários patrocinadores com eventuais parceiros da CBF ou das competições que a equipe disputava.
Na própria Copa América era previsto que os jogadores, quando escolhidos como o melhor em campo em uma partida, recebessem um troféu e dessem uma breve entrevista com ele nas mãos.
No caso de Neymar, funcionários da CBF checavam os troféus com antecedência, e informavam a Neymar pai sobre a existência de alguma marca ou patrocinador que pudesse ser concorrente de parceiros do jogador.
Apesar do zelo, elas aconteceram. Em 2014 Neymar foi filmado na Granja Comary pedalando uma bicicleta do Itaú, patrocinador da seleção. O flagra causou mal-estar com o Santander, parceiro de Neymar, e rendeu até um email com reclamações do vice-presidente do banco, enviado diretamente a Neymar pai.
Em 2018, outra Copa, outra saia justa. Neymar protagonizou uma campanha para a cervejaria Proibida, na qual aparecia vestindo uma camisa amarela.
A Ambev, patrocinadora da seleção, cobrou medidas da CBF. Juntas, processaram a Proibida, alegando que ela usava a imagem da seleção sem autorização, mas tomaram o cuidado de não incluir na ação nem Neymar nem seu pai, evitando melindrar o estafe do craque.
Por contrato, os patrocinadores da seleção costumam ter direito a utilizar a imagem de jogadores em um contexto bem específico, chamado de contexto coletivo. Isso significa três ou mais atletas em uma mesma imagem, atuando em um compromisso oficial pela seleção brasileira.
Durante os últimos dez anos na seleção, sempre houve uma exceção a essa regra: Neymar Jr. Representantes de empresas que patrocinaram a CBF por anos contam que, sempre que uma imagem incluía o craque, a orientação da confederação era uma só: pedir autorização à NR Sports, de Neymar pai, para utilizá-la.