
"Eu estava lá." Poucas coisas parecem ter a capacidade de congelar o tempo como ser testemunha ocular de um momento histórico da cultura pop. Estar, por exemplo, na plateia do programa de Ed Sullivan quando os Beatles foram apresentados aos Estados Unidos. Somar-se à multidão que, no festival Live Aid em 1985, acompanhou a performance mais brilhante do Queen. Acompanhar o caos no Paramount Theater, em Seattle, às vésperas de o Nirvana mudar para sempre as regras do rock.
Deve ter sido a sensação das 40 mil pessoas reunidas no estádio Villa Park, em Birmingham, na Inglaterra, para a apresentação de despedida do Black Sabbath. Embora a banda tenha encerrado as atividades após a turnê "The End", que cerrou as cortinas com um show também em Birmingham em 2017, a apresentação de ontem reuniu, após mais de uma década, o lineup original da banda —Ozzy Osbourne, Tony Iommi, Geezer Butler e o baterista Bill Ward, este ausente da última tour.
Embora mostrada como a despedida definitiva do Sabbath, o show, batizado "Back to the Beginning", foi claramente uma celebração à vida e carreira de Ozzy Osbourne. Acometido pelo Mal de Parkinson e se apresentando em um trono sombrio, ele pincelou algumas músicas de sua carreira solo e, em seguida, dividiu o palco com os companheiros de banda para um aceno definitivo ao estilo que eles criaram há cinco décadas: o heavy metal.
A beleza de "Back to the Beginning" foi justamente celebrar um ídolo em vida. Pode soar mórbido, mas confesso estar enfastiado de homenagens disparadas quando uma grande figura do cenário pop atravessa para o outro lado. Tom Morello, guitarrista do Rage Against the Machine e idealizador do show, pensou da mesma forma. A produção teve o dedo de Sharon Osbourne, esposa de Ozzy e sua guardiã profissional e pessoal desde 1979.
O que se viu em uma tarde festiva em Birmingham foi uma seleção de bandas influenciadas de alguma forma pelo som do Black Sabbath. Roqueiros dos anos 1970, 80, 90 e 2000 dividiram o palco em apresentações relâmpago, encaixando um cover do Sabbath entre suas próprias canções. Foi bonito ver tanta gente reunida em um estádio lotado - sem contar o ingresso virtual que possibilitou plateias em todo o mundo, inclusive este escriba, de acompanhar o barulho à distância. Foi o sofapalooza!
Claro que, num show dessa magnitude, algumas performances se elevaram ante outras. Bandas como Lamb of God e Rival Sons, por exemplo, parecem perdidas no tempo. O Slayer fez uma apresentação estremecida, e eu não faço ideia de como ainda convidam Phil Anselmo e sua deturpação do Pantera para se apresentar num bingo que seja. Já o Guns N' Roses, mesmo com Axl Rose sem a potência vocal de outrora, trouxe star power à empreitada. E o Metallica, como sempre, devorou o palco com as mãos nas costas.
Os supergrupos montados por Tom Morello foram um carrossel surpreendente de diversas gerações a serviço do rock. Apesar de faltar carisma em gente como Papa V Perpetua (vocalista do Ghost), e do aparente despreparo do veterano Sammy Hagar, foi bacana ver Nuno Bettencourt estraçalhando na guitarra, Chad Smith sempre solícito na bateria, o entusiasmo de Ron Wood e a volta de Steven Tyler, o frontman absoluto, soltando o vozeirão na dobradinha "Walk This Way/Whole Lotta Love".
A dúvida maior ao longo de toda a tarde, contudo, era com o próprio Ozzy. O Parkinson debilita aos poucos, e Sharon se antecipou dizendo, dias antes da apresentação, que o Príncipe das Trevas poderia cantar quatro músicas, com algum esforço, para justificar sua despedida. A imagem de Ozzy de bengala, frágil, justificaria a preocupação de sua guardiã.
O poder do heavy metal, contudo, precisa ser estudado, já que Ozzy é meio como Clark Kent e o Superman: hesitante e disperso em sua vida civil, ele se torna um dínamo assim que surge no palco. Mesmo sentado num trono digno da realeza do rock, o homem estava gesticulando, alucinado, levantando a plateia como se estivesse em seu auge. Se a voz por vezes hesitava, Ozzy logo se recuperava para mostrar por que ele é um dos astros mais espetaculares, com uma das vozes mais peculiares da cultura pop.
Em sua parte "solo", lembrando a carreira vitoriosa de quando deixou o Sabbath pela primeira vez, Ozzy começou com "I Don't Know", emendou com a já clássica "Mr. Crowley", passou por "Suicide Solution" e chegou a "Mama, I'm Coming Home" embargado, os olhos marejados, tão emocionado quanto a multidão. A espetacular "Crazy Train" encerrou essa primeira parte com louvor.
No mesmo fôlego, Tony, Geezer e Ward tomaram o palco com Ozzy e daí a coisa ficou bonita. E tome "War Pigs" (a minha favorita), seguida sem miséria por "N.I.B.". Enquanto Ozzy agradecia à plateia - esta já em êxtase coletivo - o Black Sabbath encerrou a festa com "Iron Man" e "Paranoid". O sentimento de ver canções fundamentais para a música moderna, executadas pela última vez por seus criadores, é agridoce.
Isso porque exigimos demais de nossos ídolos. O Black Sabbath foi formado, na mesma Birmingham que os recebeu para este adeus, num muito distante 1968. O heavy metal, talvez a vertente do rock mais longeva e popular entre todas, foi forjado em seus três primeiros álbuns. Foi o ponto de partida que influenciou centenas de bandas, muitas com raízes na classe operária britânica como o próprio Sabbath.
Mesmo tendo cumprido sua missão como artistas e entertainers repetidas vezes, com direito a diferentes line-ups e uma turnê de despedida absurdamente festejada, cá estamos mais uma vez posicionando Ozzy Osbourne e cia. no palco. Muitos de seus contemporâneos seguem superando os limites do tempo, lotando estádios com entusiasmo de iniciantes. O tempo, contudo, é implacável.
Vivemos o que pode ser a última geração de artistas que mudaram o curso da história, que criaram a fundação da cultura pop como ela é hoje. Me pergunto se o futuro aponta apenas para a repetição, e não para a inovação. Temo por um cenário musical em que não exista mais espaço para ideias verdadeiramente inovadoras que possam romper as fórmulas, os vícios, a estagnação e a velocidade de uma indústria que parece ter desaprendido a maturar. Espero estar errado.
Até porque estas são perguntas afetadas pelo peso dos anos e pela devoção a um som que continua inflamando a alma, ainda impactada pelo som transformador do Black Sabbath. Celebrar o quarteto em vida - em particular um artista tão especial como Ozzy Osbourne - é um privilégio. "Back to the Beginning" marca, na verdade, o fim de um ciclo: um momento histórico testemunhado ao vivo por 40 mil pessoas, expandidas via tecnologia por todo o mundo, para nos lembrar que gigantes ainda caminham sobre a Terra.