'Inquietante': Sophie Charlotte ganha sotaque e 'firmeza' para viver alemã

O novo filme "Virgínia e Adelaide" reconta a extraordinária história de duas mulheres que revolucionaram a psicanálise no Brasil. Em 1936, a psicanalista judia Adelaide Koch (Sophie Charlotte) foge da perseguição nazista na Alemanha e encontra refúgio no Brasil. Um ano depois, ela conhece Virgínia Bicudo (Gabriela Correa), uma jovem pesquisadora negra que se tornaria a primeira brasileira a se submeter a uma análise psicanalítica, a primeira não-médica reconhecida como psicanalista no país e uma das pioneiras professoras universitárias negras do Brasil.
O que começou como uma relação entre médica e paciente transformou-se em uma parceria profissional de três décadas e uma amizade que duraria toda a vida. O filme, dirigido por Jorge Furtado e Yasmin Thayná, explora esse encontro singular, que desafiou as barreiras do racismo, do machismo e do fascismo para deixar um legado indelével na ciência e na sociedade brasileira.
Estar neste filme foi sensacional, libertador, assustador e inquietante. Acho que nos desafiou de muitas formas.
Sophie Charlotte
O longa usa a estética teatral, com somente as duas atrizes em tela, alternando entre sessões de análise, diálogos e monólogos. "Tudo era propício: o tempo, o respiro, o cuidado com cada movimento. Porque é um filme que tem muito cuidado, é muito preciso, porque é um lugar muito íntimo esse da psicanálise, muito íntimo o lugar do encontro."
O sotaque alemão de Adelaide, interpretado por Sophie, foi cuidadosamente trabalhado para evitar caricaturas. "Era sobre mostrar a firmeza cultural sem perder a profundidade do encontro com Virgínia", explica a atriz.
Já Gabriela Correa destaca a humanidade de Virgínia: "Ela não era só uma vítima do racismo, mas uma mulher que produzia, ria e transformava".
Psicanálise como ato político
Ambas as atrizes são entusiastas da psicanálise — tema central do filme. "É como exercício físico: uma higiene mental necessária, especialmente em tempos de excesso de informação", reflete Sophie, que revela usa a terapia como maneira de lidar com a exposição de sua vida pessoal. Gabriela ecoa: "A análise nos ajuda a navegar a contradição entre quem somos para os outros e quem somos para nós".
A diretora Yasmin Thayná ressalta o viés político do filme: "Virgínia e Adelaide mostraram que a psicanálise pode ser um instrumento de emancipação, não só um privilégio de elite".
Para ela, o longa é mais que um resgate histórico — é um gesto de continuidade. "Como dizia Bezerra da Silva, 'só morre quem não é lembrado'", cita Yasmin. "Trajetórias como a da Virgínia viram segredo. O cinema é uma ferramenta para reinseri-las na narrativa".
Acho que é um filme que gosto sempre de frisar que é sobre duas mulheres racializadas, a gente não pode perder isso de vista, que estamos falando de uma mulher judia e uma mulher negra.
Yasmin Thayná
Direção compartilhada
Para Jorge Furtado, responsável por grandes sucessos brasileiros, como "Saneamento Básico - o Filme", a co-direção com Yasmin Thayná foi essencial. "Eu não faria o filme sem ela. Precisava de uma mulher negra ao meu lado para contar essa história", afirma.
Yasmin, em seu primeiro longa-metragem, trouxe não somente um olhar jovem, mas uma perspectiva que evitou o peso excessivo do tema. "A Virgínia era alegre, festiva, tinha uma gargalhada marcante. Yasmin captou isso e trouxe luz para o filme", explica Furtado.
Filme sobre enfrentamento
Produzido por Nora Goulart, "Virgínia e Adelaide" nasceu de anos de pesquisa sobre Virgínia Bicudo, uma das primeiras psicanalistas negras do Brasil, cuja obra foi marginalizada. "O filme fala de psicanálise, mas também de racismo, guerra e fascismo. São temas urgentes", diz Goulart.
A escolha por um formato híbrido — entre documentário, teatro e ficção — foi intencional. "Dividimos o filme em 'cores' narrativas: cenas realistas, entrevistas, quebras de quarta parede e arquivos. Queríamos evitar a monotonia e captar a complexidade dessas mulheres", finaliza Furtado.