Steve Vai e Adrian Belew se encontram em tributo frenético ao King Crimson

Inacreditável. Os milhares de fãs do King Crimson que encheram o Espaço Unimed na sexta (9) receberam uma benção musical de um passado distante, voltando para um lugar pouco visitado na história da música para ter suas almas lavadas ao serem atirados no meio do que é facilmente um dos maiores tributos ao vivo à banda.
O quarteto Beat, dedicado ao repertório da trilogia das cores do grupo fundado por Robert Fripp, é formado por dois integrantes que o ajudaram a compor os três álbuns no início dos anos 1980, o inacreditável guitarrista Adrian Belew e o soberbo baixista Tony Levin, que são acompanhados por dois substitutos de peso dos músicos que forjaram esta que é considerada a fase mais pop do grupo.
No lugar do histórico baterista inglês Bill Bruford está o igualmente histórico Danny Carey, norte-americano que volta ao Brasil logo depois de passar pelo Lollapalooza com sua banda principal, o Tool. E, no inatingível lugar de Fripp, um dos maiores guitarristas de todos os tempos, outro aspirante a esse posto, Steve Vai, que dispensa apresentações.
Mas, apesar da sequência de "três discos de um par perfeito", formada por "Discipline" (1981), "Beat" (1982) e "Three of a Perfect Pair" (1984), cada um deles com uma cor única na capa, ser considerada o momento mais pop de uma das bandas mais sérias da história do rock, essa coleção de canções está longe do que podemos chamar simplesmente de música pop.
Ela surge a partir da aproximação de Fripp e Belew, que havia estabelecido primeiro uma relação com David Bowie (foi o guitarrista do último disco da trilogia de Berlim, do mago inglês, "Lodger") para continuá-la com Brian Eno, que por sua vez levou-o aos Talking Heads (procurem pelo show que fez com o grupo em Roma em 1981 no YouTube).
Fripp, naquele período, vinha descobrindo pedais, efeitos e música eletrônica ao lado de Eno, que o levou a cunhar um estilo de tocar guitarra que batizou de frippertronics (com quem tocou na absurda faixa de abertura do clássico dos Talking Heads de 1979, "Fear of Music").
Essa conexão trouxe Belew para a formação sempre mutante da banda de Fripp, e este sugeriu que eles compusessem músicas com letras e melodias mais próximas do que os Beatles faziam em sua fase final, quando começaram a experimentar no estúdio.
Termina aí a conexão do show de sexta com a música pop. O território musical explorado pelo quarteto é tão cabeçudo e virtuoso quanto qualquer fase do King Crimson, mas a presença de Belew como contraponto à guitarra exuberante e desafiadora de Fripp trouxe groove, noise e melodia para o panteão do Rei Carmesim, criando discos memoráveis que renderam um show inexplicável de tão bom.
Dividido em duas partes de quase 50 minutos com direito a uma pausa de 20 minutos, o show trouxe músicas dos dois discos finais (incluindo a terceira improvável parte de "Lark's Tongues in Aspic"), no primeiro período, para dedicar a segunda parte à quase toda íntegra do primeiro disco da trilogia, "Discipline", com versões de chorar para "Frame by Frame", "Matte Kudasai", "Indiscipline" e "The Sheltering Sky".
No centro do palco, Belew era disparado a estrela da noite, com seu carisma, sorriso onipresente e um deleite de guitarrista pós-moderno, distorcendo seu instrumento com microfonia e pedais, uma voz intacta que cantava melodias clássicas e conduzindo a apresentação como mestre de cerimônias. Chegou inclusive a dividir as baquetas com Carey no início da segunda parte, em "Waiting Man".
Vai inevitavelmente brilha muito e soube se conter, seguindo a partitura do mestre Fripp, sem deixar que seu ego pusesse as canções em segundo plano, inclusive deixando a munheca soltar em bases funk que fariam Prince sorrir.
O casamento dos dois guitarristas é um grande acontecimento, tanto musical quanto cênico, quando duas personalidades distintas —Belew despachado, correndo e balançando o corpo; Vai comedido, sério e quase imóvel à esquerda do palco— se encaixavam harmoniosamente.
Tony Levin, defendendo a escola de Fripp pela segunda vez no Brasil (esteve naquela mesma casa de shows em outubro de 2019, na única vez que o King Crimson tocou no país), segue clássico e virtuoso com seu baixo-guitarra Chapman Stick, por vezes conduzindo o groove das canções, outras completando o espaço deixado nos contratempos de Vai e Belew.
Ao fundo, Carey, o caçula da banda, mostra que não se acanha ao lado dos mestres e teve inclusive direito a solo de bateria, na introdução de "Indiscipline", perto do final da segunda parte (algo que não aconteceu nos shows recentes do grupo).
Antes de voltar para o bis, Belew aproveitou para agradecer ao público e convidá-lo para uma surpresa ao baterista, que havia acabado de completar 64 anos quando o relógio bateu meia-noite, e todo o Espaço Unimed cantando parabéns a você em inglês para Carey.
E, ao retornar para a última parte, o grupo abriu uma exceção no repertório e voltou-se para um dos maiores clássicos do King Crimson, numa versão magistral para a épica "Red". O show no entanto terminou no ponto onde começou, com a banda voltando para um dos momentos mais impressionantes da trilogia das cores, quando Belew descreve a paranoia de quase morrer na Nova York do fim dos anos 1970, na frenética "Thela Hun Ginjeet". Que noite!