Polêmica em 'Geni e o Zepelim': o que motivou troca de atriz cis por trans?
A produção do filme "Geni e o Zepelim" voltou atrás e decidiu retirar a atriz Thainá Duarte, uma mulher cis, do papel principal. Ela será trocada por uma atriz trans, após o filme ter sido alvo de críticas. Entenda a origem da polêmica e a nova decisão.
Sobre o que é o filme?
O longa é uma adaptação cinematográfica da canção "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque. Essa música também faz parte do musical "Ópera do Malandro", que estreou em 1978. A peça teatral e um filme de 1986, uma adaptação da peça, interpretam que o preconceito contra Geni é motivado por transfobia.
Nas primeiras adaptações, Geni foi interpretada por homens cis. Emiliano Queiroz foi Geni no teatro, e J.C. Violla, nos cinemas.
Por que escolheram, inicialmente, uma mulher cis?
A diretora de "Geni e o Zepelim", Anna Muylaert, justificou a escolha de Thainá Duarte para a produção na semana passada. Ela explicou que a identidade de gênero da personagem principal não seria um tema abordado no filme.
Durante o processo de criação desse filme, a gente entendeu que a letra do Chico e o conto do Guy de Maupassant, Bola de Sebo -- no qual ele disse ter se inspirado--, poderiam ter várias leituras. Poderia ser uma mulher trans, uma mãe solteira, uma carroceira da favela do Moinho, uma presidente tirada do poder sem crime de responsabilidade, uma floresta atacada diariamente por oportunistas.
Anna Muylaert, em publicação no Instagram
A decisão seria resultado da escolha de qual ponto de vista seguir. "[Escolhemos] fazer uma prostituta cis na Amazônia. Uma inspiração, uma influência da Iracema, e até do que acontece hoje no Marajó, que o filme Manas retrata. A gente entendeu que essa poesia poderia ter várias interpretações, e que a gente poderia fazer esta versão amazônica cis com a atriz Thainá Duarte."
Na mesma publicação, Muylaert se mostrou aberta a mudanças, fomentando o debate nas redes sociais. "Se a sociedade —não apenas a comunidade trans, mas também todos os fãs da música do Chico e também do conto do Guy de Maupassant— achar, se a gente computar que realmente hoje, em 2025, a gente só pode interpretar Geni como trans, vamos repensar o nosso filme", disse.
Após abrir o debate, a publicação da diretora recebeu vários comentários sobre a polêmica, muitos deles contra a decisão de escalar uma atriz cis para o papel de Geni. Renata Carvalho, atriz trans, se posicionou, pedindo que a diretora repensasse. "O que nós estamos pedindo é respeito por Geni e por todas as pessoas trans e travestis que continuam sendo apedrejadas até hoje." O comentário teve mais de mil curtidas. O caso de "Geni e o Zepelim" também foi acompanhado pela Apta (Associação de Profissionais Trans do Audiovisual).
Camila Pitanga se posicionou a favor de o filme ser protagonizado por uma pessoa trans. "Você pode fazer o filme que quiser, com certeza, mas pondero que esta interpretação serve sim ao apagamento doloroso de mulheres trans. São poucos personagens com esse protagonismo, entende? É uma escolha que fere", escreveu.
A cantora Liniker também se mostrou contra a escolha inicial do filme. "Acho que, no Brasil que a gente vive hoje, o debate ser aberto como votação, se é certo ter uma pessoa trans ou cis nesse papel, já nos expõe grandemente. O Brasil não é um país acolhedor aos nossos corpos e trajetórias, principalmente se tratando de um protagonismo numa produção audiovisual", comentou.
A atriz Debora Lamm questionou sobre a livre interpretação da obra. "A leitura e interpretação de qualquer obra é naturalmente livre, mas o que é a liberdade sem pensarmos também no humano? Vivemos num mundo onde o apagamento de pessoas trans é naturalizado, muito pouco refletido. Não optaria então por uma icônica Geni cisgênera, é um balde de água fria na possibilidade de fazer diferente! Geni é a oportunidade, infelizmente ainda rara, de uma protagonista trans!"
Mudança de atriz
Anna Muylaert anunciou ontem que o papel principal do filme será desempenhado por uma atriz trans, e não mais por Thainá Duarte. A diretora foi às redes sociais para anunciar a mudança no filme. Ela disse que errou ao escalar uma atriz cis para interpretar Geni. "Fazer esse filme com uma mulher cis foi um erro, foi um equívoco, quero pedir desculpas a todas as pessoas da comunidade trans que se sentiram apagadas em sua corporeidade por causa dessa ideia", disse.
Tive uma visão errada. Vamos trocar a personagem e adaptar o roteiro para uma personagem trans, a Geni.
Anna Muylaert
Ela também pediu desculpas a Thainá, que havia sido escalada. "Eu também queria pedir desculpas para a atriz Thainá Duarte, que, por causa de uma ideia, minha foi tão exposta a haters na internet, que eu entendo que eram agressões a qualquer atriz cis que estivesse nesse papel, mas ela sofreu as agressões pessoalmente."
Em publicação nas redes sociais, Thainá também comunicou sua saída do projeto. Ela disse lamentar que toda a discussão tenha causado tanta dor.
Geni será interpretada por uma mulher trans, lamento que todo esse processo tenha causado tanta dor. Reafirmo meu compromisso com a escuta, aprendizado e com a luta pela equidade! Boa sorte e todo meu carinho.
Thainá Duarte
Ela conta que tinha aceitado o papel somente após conversar com Anna Muylaert. A atriz teria perguntado por que Geni não seria uma mulher trans e ouviu que a ideia era fazer uma releitura, falando de Amazônia em paralelo com o feminino.
Sinto muito que essa escolha tenha machucado tanto a comunidade trans. Agora eu entendo melhor o tamanho dessa reivindicação. Estou colocando do lado de quem está ferido. Reconheço o lugar de fala, a urgência e a dor de estar pedindo pelo mínimo, que é respeito [...] Mas isso não justifica alguns dos ataques que recebi, como 'transfóbica oportunista, você é nojenta, você merece morrer'. Mensagens que supunham que eu não estava aberta para o diálogo. E eu estou. Tá doendo. E eu espero que a atriz que interprete a Geni faça tão bem que isso possa sanar um pouco a dor que estamos sentindo.
Thainá Duarte
As empresas responsáveis pela produção —Migdal Filmes, Paris Filmes e Globo Filmes— também explicaram a decisão de trocar a atriz, afirmando que foi "fruto da escuta atenta e do aprendizado de intensas trocas com pessoas de diferentes setores da sociedade". A nota enviada a Splash também cita o momento político global e a transfobia no Brasil.
Compreendemos que o momento político global, e em especial o cenário transfóbico no Brasil, impõe a todas as pessoas uma postura ativa e comprometida. Consideramos que esta mudança de abordagem da identidade de gênero da personagem no filme é a atitude acertada. Diante desta decisão, expressamos nossa profunda admiração e gratidão a Thainá Duarte --uma atriz de grandeza e talentos únicos. Agradecemos ainda à Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (Apta), que realizou conosco uma conversa franca e nos apontou caminhos. Agora precisamos nos dedicar ao filme, que começa a ser rodado em duas semanas, no Acre. Em breve divulgaremos quem será a protagonista. Que Geni ganhe o mundo e sensibilize corações e mentes.
Migdal Filmes, Paris Filmes e Globo Filmes
Ainda não foi revelado quem será a nova protagonista de "Geni e o Zepelim". Até o momento, apenas Seu Jorge foi confirmado no elenco, como o comandante do Zepelim.
Entenda os termos cisgênero e transgênero
- Cisgênero é o indivíduo que se apresenta ao mundo e se identifica com o seu gênero biológico. Por exemplo, se foi considerada do sexo feminino ao nascer, usa nome feminino e se identifica como uma pessoa deste gênero, esta é uma mulher "cis".
- Transgênero é um termo "guarda-chuva", segundo a GLAAD, organização LGBTQIAP+ dos Estados Unidos que monitora como os membros da comunidade são tratados pela mídia. Ou seja, ele abrange todas as pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer.