Em 1954, Fredric Wertham abalou as estruturas da cultura pop. Com o polêmico livro "Sedução do Inocente", o psiquiatra responsabilizou os quadrinhos por casos de delinquência juvenil e por encorajar comportamentos que via como errados, como a homossexualidade.
A obra iniciou uma caça às bruxas nos Estados Unidos: gibis foram atacados e até queimados em praça pública. Para sobreviver, as editoras adotaram uma rígida autorregulamentação com censura prévia, marcando uma transformação nas HQs. É isso o que diz o relato dominante.
Mas essa é realmente toda a verdade? "'Sedução do Inocente' foi mal interpretado", provoca Jotapê Martins, que tem 46 anos de carreira como tradutor e editor de quadrinhos em grandes editoras, como Abril e Via Lettera, da qual foi cofundador.
Após quase quatro anos de pesquisa, Martins apresenta uma nova perspectiva sobre um dos homens mais controversos do entretenimento. O trabalho chegará em breve ao público brasileiro pelas mãos das editoras Noir e Heroica, em uma caixa especial composta por dois livros: o original, publicado pela primeira vez no nosso país em tradução de Nobu Chinen; e "Reflexão do Inocente", uma análise crítica inédita e aprofundada dos escritos de Wertham.
A publicação será financiada no Catarse, em campanha de financiamento coletivo que começa na próxima semana, e será lançado nas livrarias em 2025, com tiragem limitada.
Além de sua trajetória no universo das HQs, Martins é psiquiatra e psicanalista, o que explica sua fascinação pelo trabalho de Wertham. Para ele, embora muito se fale sobre a obra, poucos tiveram acesso ao seu conteúdo completo devido ao limbo jurídico dos direitos de publicação e à falta de herdeiros conhecidos do autor. Desta vez, para prevenir possíveis problemas legais, há o compromisso de pagar royalties caso algum detentor dos direitos autorais venha a se manifestar.
O surgimento de 'Sedução do Inocente'
Nascido Friedrich Ignatz Wertheimer em Nuremberg, em 1895, Fredric tinha origem judaica e emigrou para os Estados Unidos nos anos 1920, onde consolidou sua carreira como psiquiatra. "Ele é um intelectual europeu de inclinações de esquerda, com uma preocupação social, que defendeu obras que foram censuradas por serem consideradas obscenas. Ele compareceu a julgamentos para defender essas obras. Sempre foi um defensor de causas da minoria afro-americana, uma preocupação muito importante com a juventude, com a infância, mas principalmente com os mais pobres - de adolescentes e crianças negras", destaca Jotapê Martins.
O período coincide com a explosão das revistas em quadrinhos dentro da cultura norte-americana - inicialmente com os super-heróis, mas depois também com outros gêneros, como terror. São as observações e trabalhos de Wertham dentro deste caldeirão que resultam no conteúdo que depois seria lido em "Sedução do Inocente".
A principal má interpretação, justamente porque o livro não é lido e é muito falado, é a impressão de que o Wertham era um fascistoide, um hipócrita que escolheu um bode expiatório muito conveniente para atacar a liberdade de expressão e a liberdade de criação, com pautas muito reacionárias. Ele nunca foi isso. Jotapê Martins, autor de "Reflexão do Inocente"
De acordo com Martins, o psiquiatra alemão tinha uma preocupação genuína. Ele via os gibis como uma das principais causas de delinquência juvenil, que era um problema percebido muito no pós-guerra nos Estados Unidos. "Ele realmente achava que eles deviam ser muito regulados".
Além disso, o brasileiro defende que não foi Wertham quem iniciou a perseguição aos quadrinhos nos anos 1950. "É uma interpretação equivocada, mas a fama do livro, sem ser lido, traz isso", diz. De acordo com Jotapê, o movimento na realidade começou ainda em 1940, com o psiquiatra entrando na discussão apenas na segunda metade da década.
O livro atendeu a demandas reacionárias daquela sociedade, então ficou a impressão de que ele era originalmente reacionário. [O que ocorreu é que] Ele defendeu uma pauta muito reacionária, que atendeu aos anseios daquele momento. Jotapê Martins
Seja como for, o que ficou para a história é que a publicação de "Sedução do Inocente" foi o estopim de um pânico moral que levou às discussões dentro de um subcomitê do Senado dos EUA formado para investigar essa "delinquência juvenil". Fredric Wertham foi um dos principais depoentes no processo.
Temendo a proposta de uma lei ainda mais rígida e pressionadas pela sociedade, as editoras decidiram implementar o Comics Code Authority. Essa autorregulamentação, que funcionava como uma espécie de censura prévia, ficou conhecida no Brasil como "código de ética". Diversas editoras fecharam ou mudaram totalmente o seu conteúdo, migrando para gêneros como romance e aventura —e os super-heróis foram redescobertos.
Pesquisa cheia de erros
Jotapê Martins é categórico ao afirmar que o psiquiatra estava equivocado em suas observações e análises - independentemente de como foram interpretadas na época e nas décadas seguintes.
Essa ideia de que os quadrinhos eram a causa da delinquência juvenil, ou uma das principais causas, é uma conclusão que não resiste à mais básica das investigações. E é o que a gente muitas vezes identifica no livro 'Reflexão do Inocente'. Jotapê Martins
Com a colaboração de Durval Mazzei Nogueira Filho e Francisco Baptista Assumpção Jr., ambos estudiosos da psiquiatria, Martins não só se debruça sobre a pesquisa de Wertham, mas também analisa todo o contexto da época.
Uma fonte importante de dados foi a pesquisa de Carol Tilley, doutora pela Universidade de Illinois, publicada em 2011. Ela teve acesso aos arquivos originais da pesquisa e descobriu que houve manipulação para justificar as opiniões do autor original.
"Mais do que manipular dados, as interpretações, as conclusões e a forma como ele as deduzia não respeitavam os preceitos mínimos de uma pesquisa científica", reflete Jotapê. "Ele se deixava levar por valores morais dele próprio. Tinha muitos julgamentos moralistas, que atrapalhavam bastante a chegada de conclusões". Para o especialista, tratava-se de uma metodologia totalmente errada, que criava "leis" a partir de observações isoladas. O brasileiro destaca ainda que a ciência avançou muito nos últimos 70 anos.
Republicação polêmica
Nem todos os pesquisadores compartilham dessas opiniões. Um exemplo é Waldomiro Vergueiro, fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, além de mestre e doutor em ciências da comunicação. "Com todo o respeito pelo meu amigo Jotapê, eu diria que de boas intenções o inferno está cheio e que ser de esquerda não é desculpa ou autoriza alguém a dizer ou fazer asneiras, como fez continuamente Fredric Wertham", afirma categoricamente.
Para Nogueira, Wertham incitava que revistas em quadrinhos fossem queimadas independentemente do seu conteúdo. O professor e pesquisador também declara que, "numa época de redes sociais como as nossas, é bastante viável imaginar que muitas pessoas vão ver a publicação como uma demonstração de apoio às ideias do Wertham. Lerão apenas aquilo que lhes interessa. Aconteceu antes, vai acontecer de novo".
A publicação do livro do Wertham em português no Brasil - único lugar em que alguém teve a ideia idiota de traduzi-lo - não é absolutamente equivalente a relembrar o passado. É muito mais o desenterrar de ideias totalmente desacreditadas, cuja falsidade já foi comprovada. É semelhante à divulgação dos estudos que diziam ser a cloroquina um remédio eficiente para o combate da covid. Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos, da USP
Gonçalo Junior, outro especialista em HQs e que é o editor responsável pela publicação de "Sedução" e "Reflexão do Inocente" no Brasil, se defende: "Riscos nessa era de extremos sempre existem, mas esta é uma obra voltada para pesquisadores".
Na visão de Gonçalo, informações como um subtítulo negativo - "O polêmico livro que deflagrou a censura aos comics dos EUA"- deixam bem clara a intenção e cuidado dos editores. "Além disso, ele não será vendido em separado, ele vai ser vendido lacrado em par. Então, quem comprar o livro vai ter que comprar o segundo, do Jotapê".
Como vemos, é um desafio equilibrar entre a necessidade de revisitar o passado para evitar que erros se repitam e o paradoxo da tolerância, que nos alerta que a condescendência irrestrita pode destruir a própria ideia de tolerância.
No fim, é irônico que justamente os quadrinhos, alvos de tantas controvérsias, ofereçam o cenário perfeito para explorar esse debate tão atual.
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