'Melhor pão de queijo é de mainha': 'baianeira', Manu Ferraz é chef-guardiã
"Não me iludo/Tudo permanecerá do jeito que tem sido/Transcorrendo, transformando/Tempo e espaço navegando todos os sentidos"
"Tempo Rei" concluiu este bate-papo. Mas a canção de Gilberto Gil, trazida pela chef Manuelle Ferraz, poderia percorrer toda a conversa direto do sobrado que abriga seu A Baianeira, na rara calmaria de São Paulo que a rua Dona Elisa, na Barra Funda, proporciona.
Não se sabe se é o signo (Peixes), a origem (Almenara, no Vale do Jequitinhonha), a alma de fronteiras prolíficas (baiana-mineira... baianeira) ou a profissão pregressa (advogada), mas além da cozinha, Manu é mulher de palavra e das palavras. E que palavras!
À frente de dois restaurantes - A Baianeira Barra Funda, a irmã mais nova no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e um bar - Boteco de Manu -, e também jurada do reality de TV The Taste Brasil, que reestreia nesta quinta (3), ela navega muitos negócios se movendo ao mesmo tempo.
"É mais do que uma correria, é uma construção, uma artesania de colcha de retalhos, sabe?", "poetisa", como o fez particularmente naquela manhã de entrevista regada a cafezinho coado.
Porque não é um modelo pronto de negócio. É vivo, inacabado sempre, que você precisa estar repensando o tempo inteiro em dois caminhos: um para não sucumbir e engessar ou a acabar se tornando um modelo comum, que faz perder o encanto dessa construção tão genuína, inicia uma viagem nostálgica.
O pequeno, o médio e o grande
Empreendedora "em tempos difíceis", como Manu mesma diz, tudo começou pequeno - e notável - com o pão de queijo. Das andanças pelo mundo, quando se situou em São Paulo, percebeu que faltava nos arredores o pão de sua memória - muito distante dos levain tão celebrados hoje.
Faltavam, também, os ingredientes da terra: o polvilho, o queijo, a identidade lá do território "baianeiro". A solução foi "importar" direto da melhor fonte: sua mãe.
Mainha faz o melhor. A receita é dela e a mesma receita desde sempre pra sempre, diz sobre a musa inspiradora de seu primeiro negócio, o Quem Quer Pão.
Hoje, a iguaria é um dos maiores sucessos da casa, seja o tradicional ou os recheados com requeijão de corte, ou vinagrete de abobrinha e queijo de cabra, ou carne de panela, ou queijo de Almenara... e por aí deliciosos vão.
Em 10 anos, da casinha de pão aos restaurantes Bib Gourmand - a lista dos bons acessíveis do Guia Michelin - os ingredientes da terra-mãe foram aumentando, e crescendo e trazendo mais gente para as oportunidades à medida que incentiva uma malha gigante de produtores locais.
"Eu devolvo para quem me constitui", conta. "Quando eu trago o requeijão de corte e depois volto porque tem quem consuma, ele volta a fazer. Temos uma grande cadeia aqui que a gente faz girar".
Está para além de só os 70 funcionários que Manu lidera hoje. "Tá pro Alcides da Feira da Água Branca, que hoje é muito mais conhecida, mas que tá comigo desde o dia um", diz.
E essa gana não se restringe somente ao seu Vale do Jequitinhonha, mas a uma série de "vais e voltas" pelos quatro cantos do Brasil.
Arroz e feijão é a salvação do mundo, o carreteiro, o baião de dois. Quando a gente sai, a gente vai em busca deles para lembrar de onde a gente é.
De fora pra dentro
E Manu não fala desse "sair" sem propriedade: foram dois anos fora do Brasil.
Apesar de ter se formado em direito e ter trabalhado na área, Manu já havia escolhido a gastronomia, ainda que, numa casa de cozinheiras, não ter percebido o destino logo de cara.
Sou de uma família de salgadeiras. Era mais abrir a forminha do que podia pôr a mão na massa. Mas eu acho que é ancestral, é genético, é transcendental. Aí, sim, fui morar fora sozinha, e aí comecei a fazer, mas pra comer.
O "chamado" veio em terras muito mais geladas, quando foi à Escócia estudar e viu que era possível viver além do "fish and chips" se garimpasse os ingredientes de qualidade necessários.
Na volta ao Brasil, a Minas e a Belo Horizonte, começou a sentir a alegria em mesas de amigos. "Fui me encorajando a escolher a gastronomia e isso me fez querer um caminho potente de estudo, dedicação, de obstinação e nunca estar satisfeito e sempre buscando".
E assim se formou no SENAC da capital mineira. E assim, no dia seguinte, partiu para Nova York.
Cheguei lá e falei: 'Vou trabalhar aqui e vou compreender o que é que faz o mundo e se eu fizer aqui, eu vou fazer em qualquer lugar'.
É como dizem: "If I can make there, I can make anywhere, it's up to you... New York, New York".
E assim foram dois anos, trabalhando incansavelmente, sem férias, para entender o que é essa cozinha profissional. Começou descascando batatas e chegou a subchef de uma steak house diante dos melhores ingredientes, equipamentos e mentores.
"Aproveitei cada segundo e percorri o universo gastronômico. Acessei isso muito rápido e... cansei", conta. O turbilhão a fez chegar ao limite físico. De volta para casa, já muito mais confortável com seus rumos e ideias, bateu na porta de onde o mundo começou a encontrar o Brasil: no D.O.M de Alex Atala.
Em sete meses de estágio, percebeu que dominava muito e o que ainda não sabia se dedicava a anotar em um caderninho, comparando daqui, calculando de lá, matutando próximos passos. Ao ter a proposta de ser contratada, pausou e negou.
"Estava na hora de entender o que é que ia fazer com tudo aquilo, porque senão só seguiria trabalhando e trabalhando. E veio chamado", relembra.
Andando pelas esquinas da Barra Funda, dobrou a esquina e viu a placa de "aluga-se" na casa onde hoje está o A Baianeira. E aconteceu, "step by step".
Não é que tudo tenha encontrado fluidez desde o início.
No primeiro ano foi sangrando, precisava pagar as coisas não tinha de onde tirar, mas eu me despia inclusive de já querer achar que aquilo ia me dar um dinheiro. Tomei SubZero antes de Champanhe, compara.
Guardiã de saberes
Entre os negócios e a cozinha, o inegociável é boa comida, diz. Manu, porém, se dobra em mil para transformar o que chama de "cozinha de casa".
Sou guardiã desse lugar grandioso que a nossa família particular tem. Quero muito que as pessoas compreendam que essa cozinha de vó norteia tudo, mantém o mundo. Não dá para falar de futuro sem falar de tradição, não dá para transgredir sem ter passado por uma travessia, acredita.
É esse caldeirão de referências do fazer mais simples, memórias e identidade que faz A Baianeira ser o que é.
"A minha cozinha autoral, na verdade, é uma cozinha de várias pessoas. Não é sobre Manuelle. Defendo com unhas e dentes, mas não é sobre mim."
Tudo isso não estava sempre tão claro para Manu, com experiência da gastronomia contemporânea de fora, de Nova York, ou mesmo ao lado de Alex Atala.
Foi através do trabalho, e não ao contrário, que Manu foi atrás do que é. "Essa conexão começou emocionada, numa busca íntima, mas depois eu fui compreendendo que, na verdade, era isso o que ia sustentar tudo", conta.
Fui muito feliz nesses 10 anos justamente porque eu respeitei muito o tempo de construção das coisas. Não tem como você não revisitar tudo isso para continuar nesse caminho de prosperidade, descreve.
Do museu ao boteco
E foi com essa consciência que Manu chegou ao MASP há quatro anos: não como business, mas contando uma história.
Não tive dúvida de quando eu entrei naquela estrutura, me conectei à Lina, à A Mão do Povo Brasileiro [primeira exposição temporário do local, em 1969]. Era sobre isso que ela queria falar, diz.
Foi na conquista deste espaço icônico que Manu viu que nada mais a tiraria desse caminho de se entender e não ter vergonha de ser popular, de ter sotaque e raízes potentes. "De não ser cópia", conclui.
10 anos depois, o nascimento d'A Baianeira foi brindado em festa junina e também no nascimento de um boteco. Boteco De Manu - "esse 'de' identifica nosso dialeto".
"Eu não tinha planejado abrir um boteco, mas eu sou da rua, das beiras de estrada", conta.
A centelha de um novo lugar surgiu quando o imóvel da Rua Lavradio 235 finalmente vagou. Depois de 10 anos de paquera pelas andanças da Barra Funda, deu namoro.
E quando eu entrei ali eu falei: 'Vou ser a dona desse puteiro'. Quis assumir esse Brasil profundo, desse brega, dessa vitalidade. Chego lá pedindo licença Pomba-Gira neste encontro da encruzilhada, descreve.
Por isso, a rosa vermelha como símbolo. "É essa mulher liberta, que não tem amarras, que pode ser feliz, que pode fazer tudo, inclusive ser dona do próprio negócio".
Para os próximos 10 anos, Manu acredita nas pausas, redesenhos e da compreensão dos negócios feitos de gente - "é preciso reencorajar".
É menos sobre ingrediente, ser autoral somente, gastronomia e sucesso. Só dá pra fazer negócio coletivamente, apaixonadamente, igual, mas diferente. É percorrer e alimentar. De novo, Tempo Rei.
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