'Preciso falar pra nos sentirmos menos 'mães de merda'', diz Samara Felippo
Um retrato real da pluralidade das famílias e da maternidade é o que traz às telas o documentário "Do Laço ao Abraço", lançado em 31 de agosto, na capital paulista. Nele, são trazidos temas como parentalidade, adoção, atipicidades e racismo, contando com depoimentos como os da ativista Caterina Rino, da psicanalista e mãe Vera Iaconelli, e da atriz e mãe Samara Felippo. "Existe mãe perfeita, ela ainda só não teve filhos", diz.
Ecoar as dores que ressoam em muitas mulheres. Olhar pra essa dor pra mim é fundamental, não só para encará-la, mas para jogar no mundo como uma pauta social e de transformação, para que, quem sabe, uma mudança aconteça.Samara Felippo, atriz, mãe, autora e produtora
Para Samara, essa é mais uma forma de contribuir para que as mães possam se identificar umas com as outras, e perceber que não estão sozinhas. Não que seja prazeroso. A atriz recebe diariamente não apenas desabafos, como também comentários negativos, inclusive de outras mulheres e mães.
A visibilidade é quase nula para as pautas maternas, para o trabalho materno, então tudo pra mim é botar a boca no trombone mesmo, é falar, é reclamar, inclusive isso é uma das grandes razões pelas quais eu tenho muito hater né? Dizem que sou a reclamona, mas já sei lidar com isso que nem malabarismo.Samara Fellipo, atriz, mãe, autora e produtora
Desnudar a maternidade real tem sido parte constante do trabalho de Samara. "Falar sobre pautas que ainda são muito tabus, sobre a maternidade, é muito polêmico, atacado. Então sou um pouco pessimista, porque sei que vivo numa bolha, que eu tento furar. A maternidade é pesada, porque sou sobrecarregada. Preciso falar sobre isso, até pra libertar muitas outras mulheres, para nos sentimos um pouco menos mães de merda, que é o que a gente se sente, né?".
Posso gostar dos filhos e não da maternidade?
Um dos comentários mais famosos da atriz vira e mexe é replicado internet afora. Nele, ela dizia que gosta das filhas, mas não da maternidade - e não se arrepende. Apenas entende que o problema não é o maternar e sim a sobrecarga materna.
Vou falar quantas vezes tiver que falar: A gente até gosta da maternidade, nossos filhos são deliciosos, só que ela é difícil, é pesada, porque você tá sozinha nessa, a sociedade implicou a responsabilidade toda pra mulher? Um pai sair fora é completamente natural, entendeu?Samara Fellipo, atriz, mãe, autora e produtora
Outra polêmica envolvendo o maternar da atriz aconteceu durante o intercâmbio de sua filha mais velha, adolescente, que foi morar um período com o pai - o que gerou inúmeras críticas.
"Essa história tem tantas camadas. Eu estou acostumada a lidar com hater, são pessoas que acham que conhecem a tua vida inteira, pela internet. Minha filha sempre idealizou essa coisa de morar nos Estados Unidos, eu cuido delas sozinha há 15 anos, então não tenho nem o que discutir sobre isso. O pai pega uma vez por ano, a relação delas com o pai é ótima, paizão. E na próxima encarnação eu quero vir pai", ironiza.
Tem hater, mas tem fã também
A capacidade de se blindar e proteger as filhas também traz elogios: a atriz chega a ser um mártir para muitas mães, que deixam comentários dando parabéns e agradecendo a coragem de falar sobre temas delicados.
Um deles, o racismo: Samara denunciou nas redes sociais e nos tribunais o episódio racista ocorrido contra sua primogênita na escola. E aguarda que os pais de quem praticou o ato e a instituição sejam responsabilizados.
"Por mais que seja crime previsto em lei, o Brasil é um país tão racista que estão querendo tratar o caso da minha filha, que foi de racismo explícito e com provas, como violação de direito autoral. Estou nessa luta, e não apedrejando um lugar, porque eu poderia mudá-la de escola, mas isso vai acontecer em outro lugar e com outras pessoas. Se eu como pessoa influente, privilegiada, estou passando por isso, imagine quantas famílias não passam também?", comenta.
O que a motivou, há mais de oito anos, a falar publicamente sobre assuntos como esse foi mostrar que, de maneira geral, as mães passam pelos mesmos perrengues, desmistificando o lugar de pessoa pública, mãe branca, de classe média. Não foram poucos os desabafos e agradecimentos recebidos por ela, e isso a incentivou ainda mais.
E a luta e o debate continuam
Quando questionada se vale a pena continuar, mesmo sabendo que as filhas já têm idade para acompanhar o que está acontecendo e dar um google no seu nome, pondera. "O que me faz continuar, mesmo levando porrada, tropeçando, é saber que isso eu estou passando pras minhas filhas, sendo exemplo delas como mulher, mostrando que podem ser livres nas escolhas".
A artista confessa ter o desejo de que a maternidade seja para suas meninas um lugar de consciência, "que elas entendam o rolê todo", e que as discussões sobre o tema permeiam a rotina.
Falo não só em entrevistas, mas em palestras, e elas estão meio que ligadas também dentro de casa. Estou vendo filmes, séries, futebol juvenil com elas, e pontuando. Falo, ó, tá vendo como pesa pra mãe só? Passa uma propaganda e falo: cadê o pai, é só a mãe ali? Eu tô sempre trazendo um pouquinho dessa realidade pra elas.Samara Fellipo, atriz, mãe, autora e produtora
Voltando à conversa, sobre uma sociedade que sobrecarrega a mulher e, acima de tudo, romantiza esse sacrifício, a artista alerta que reflete apenas um recorte da realidade.
"Gosto sempre de trazer isso, que é a gente aqui dentro de uma casa super privilegiada, não dá nem pra mensurar o que tantas outras mães, periféricas, mães pretas, passam."
De todo jeito, acredita que é importante todas as mães falarem, se assim desejarem, mesmo sob fortes críticas. "Não parem de falar, porque se você não falar você vai ser julgada e se falar também. Se a gente quer qualquer tipo de transformação, é através das mulheres, principalmente das mães", conclui.
Um abraço para todas, por favor?
Idealizado pela Somos Mães, organização sem fins lucrativos de apoio e informação a gestantes e mães, a ideia do documentário "Do Laço ao Abraço" surgiu antes da pandemia e com uma proposta clara; trazer a pluralidade que uma só mãe nunca será capaz de retratar. As redes sociais ajudaram a encontrar famílias que pudessem representar a diversidade de famílias: 'padrões', pretas, atípicas, miscigenadas, enlutadas, adotivas, homoafetivas, solo, vulneráveis?
As histórias retratam desde gestantes até pais de adolescentes. A idealizadora Acácia Lima acredita que o projeto traz representatividade, mas reforça que a realidade é mais plural do que podemos imaginar. "É claro que a gente, certamente, não consegue cobrir todas as possibilidades... Por exemplo, acho que precisaria falar das mães que abandonam os filhos. Porque existe. Precisaria falar das pessoas que adotam crianças e as devolvem. Existe também", pontua.
Um dos pontos altos do projeto é focar não no ônus ou no bônus de ter filhos, ou seja, não polarizar o discurso. "As dificuldades são apresentadas, as delícias também são. A gente não pode mostrar só a delícia nem só a dificuldade, porque a vida é assim."
No final das contas, onde a gente esbarra? Puramente em padrões sociais estabelecidos, que prejudicam uma relação tão genuína. Mesmo sabendo que o amor que sentimos pelos filhos é soberano, ele está muito poluído, com muitas questões, que acabam impactando neles. A ideia é limpar o nosso amor também.Acácia Lima, jornalista, mãe, idealizadora e produtora-executiva de Laços e Abraços
Apesar de já falar sobre maternidade há anos, em um livro, um podcast e nas redes sociais, Acácia viu nas telonas a chance de ganhar mais atenção e entregar a emoção na veia. Foram mais de 40 horas de gravações e o material não incluso no documentário (incentivado pela Lei Rouanet e disponível no streaming em 2025) será liberado em capítulos extras no canal do YouTube do projeto.
Paralelamente ao documentário, surgiu ainda uma exposição virtual de auto retrato materno, cujo intuito é mostrar o dia a dia das mães (e não as fotos que postamos na internet), e o livro "Somos Mães de Primeira Viagem", com histórias de mais de 30 personagens que não estão no filme, e textos de profissionais como psicólogos e pediatras. Todo o projeto apresenta famílias com diferentes jornadas, buscas, aprendizados, e mostra que - dentro de tamanha pluralidade - há muito o que se compartilhar.
A gente quando erra, fica lá quietinha sofrendo, remoendo. Precisa quebrar o silêncio e precisa pedir ajuda. São duas coisas que hoje eu acho que são fundamentais. Acho tão libertador, e pode ser que pra outra pessoa possa ser libertador também.Acácia Lima, jornalista, mãe, idealizadora do documentário Laços e Abraços
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