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'Esperam que você esteja feliz e grata o tempo todo por estar grávida'

A gestação de Licene: longe de ser perfeita - Divulgação
A gestação de Licene: longe de ser perfeita Imagem: Divulgação
do UOL

Luciana Bugni

Colaboração para Universa

23/04/2024 14h48

"Eu só consegui curtir minha gravidez quando completei 24 semanas. Aí eu olhava no espelho e achava a barriga bonita. Durante os primeiros meses, especialmente o primeiro trimestre, passei muito mal. Apesar de ter passado a vida desejando ser mãe, eu não esperava engravidar naquele momento. Estava fazendo um mestrado no Rio de Janeiro e ia toda segunda para lá.

Voltava e trabalhava de São Paulo nas quartas, quintas e sextas. É uma rotina tão maluca que nem percebi que a menstruação estava atrasada. Achei que estava com um pouco de cólica e ficaria menstruada a qualquer momento. Passados alguns dias, fui olhar minhas anotações e percebi que a menstruação havia atrasado seis dias — muito para alguém que sempre foi regulada. Contei para meu parceiro e ele disse: 'Ih, Li'. Nesse momento, percebi que talvez estivesse grávida. Fiz o teste de farmácia que deu positivo e corri ao laboratório para fazer um exame de sangue, que também deu positivo.

licene - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Licene e o filho: maternidade se constrói
Imagem: Acervo pessoal

Continuei a rotina de ir ao Rio todas as semanas, mas me sentia enjoada o tempo todo. Além disso, não me reconhecia no espelho. Gestação é algo singular: por mais que eu tente explicar, é difícil alguém entender o que eu vivi naqueles meses. Tudo muda na relação com o corpo: eu me sentia uma estranha habitando meu corpo, mas a gente vai se adaptando como tudo na vida e, quando acostuma, entra em uma nova fase.

Perdi meus pais na pandemia e, talvez por ter vivido isso, tenho firme que as coisas passam. Nem tudo é para sempre, é o modo que acabei encontrando para atravessar as adversidades da vida.

Gravidez é uma fase. O primeiro trimestre acaba. Os enjoos acabam. Eu focava nisso para seguir. Tinha dificuldade de falar sobre as partes ruins com minhas amigas, apesar de ter sido a última de meu círculo a engravidar. Parece que as pessoas esquecem o que viveram.

Aprendi que não é com todo mundo que se pode compartilhar o que se sente. Há pessoas que são muito duras, não conseguem acolher quem quer reclamar um pouco. Para essas, eu só dizia que estava tudo bem. Tenho a impressão que é senso comum achar a gravidez linda, mas não se suporta ouvir o que de fato acontece ou sente uma mulher grávida. Esperam que você esteja feliz e grata o tempo todo por estar grávida. E também acham que se pode tocar na sua barriga o tempo todo. Até pessoas estranhas fazem isso e parece que seu corpo virou domínio público. O mundo evoluiu, mas o universo da maternidade ainda tem muitos tabus. Nem tudo é 'você está ferrada', mas nem tudo é 'como é maravilhoso'.

Uma mexidinha para curtir

Comecei a curtir quando Martin se mexeu pela primeira vez. Eu já sabia que era um menino, mas não havia escolhido o nome. Só depois de sentir a presença dele mexendo eu percebi que era hora de nomear. Não existe para mim a pressão de ter tudo perfeito — até metade da gestação, nem nome ele tinha.

Outra questão do primeiro trimestre foi o risco de ele ter alguma síndrome, como foi detectado no exame morfológico. A outra possibilidade era eu ter tendência a ter pré-eclâmpsia. Fizemos um exame genético e eu, que queria muito ter uma menina, nem pensei mais isso: só queria que ele estivesse bem. Confirmou-se a segunda opção e eu fiz preventivo para pré-eclâmpsia durante todo o trabalho de parto. Choro até hoje de me lembrar do resultado.

Quando estava na 20ª semana, me sentia bonita e ficava admirada com o fato de as pessoas serem muito gentis com grávidas. Eu me sentia querida. Porém acho importante falar que nem tudo são flores na gravidez. O enjoo era terrível. Comecei a inchar demais e não conseguia colocar o pé no chão. Sentia muito incômodo, dor, desconforto.

A gestação é bonita e pode ser idealizada de maneira romântica, mas viver isso não é confortável. Há um momento ali em que parece que nunca vai acabar. Não é a melhor experiência do mundo ter alguém dentro de você. Para mim, não há essa aura de divindade nem é um mar de rosas: havia momentos em que eu gostava muito da situação, em outros eu me sentia péssima, com calor, gases, refluxos. Mas grávida tem coisas que mudam de um dia para o outro. Por isso, eu focava que tudo era passageiro.

É tudo muito visceral. Em um curto espaço de tempo, é preciso se refazer como mulher várias vezes. Mas eu pensava que teria data para acabar, apesar de que, quando você está vivendo, parece que vai durar para sempre.

Trabalhei até a 38ª semana e muito! Eu amo meu trabalho e nem me via parando na licença. Como tinha pré-eclâmpsia, tinha uma cesárea marcada, mas acabei entrando em trabalho de parto antes. Eu nunca me pressionei a ter um parto natural. Para mim o importante era receber o Martin: saber a via de parto pela qual ele viria, era irrelevante. Parto para mim é consequência e não a condição para um propósito maior que era receber meu filho.

Quando minha bolsa estourou e eu fui para o hospital com contrações, percebi que não queria ficar muitas horas ali com aquela dor. Martin nasceu com uma cesárea. Admiro as mulheres que ficam 15 ou 30 horas em trabalho de parto, mas tenho convicção de que não seria legal para mim. Queria que ele viesse ao mundo de uma maneira segura e foi o que aconteceu: assim que nasceu já veio para o meu colo.

Hoje eu sinto até saudade quando vejo uma grávida na rua. Mas penso que já vivi isso. Não gostava do enjoo, não achava posição na cama, mas a barriga eu achava linda. É importante lembrar que é um momento da vida e eu aproveitei esse momento. Como tudo na vida, o saldo que fica é a maneira como a gente leva — posso fazer disso tanto um martírio como tirar algo bom. A gestação não diz a mãe que você vai ser: a maternidade se constrói na relação do filho e a gente vai se reinventando como mãe a cada dia."

Licene Garcia, 38 anos, psicóloga, mãe de Martin, de 1 ano

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