Em 2024, é impossível imaginar qualquer país do mundo sem ao menos um reality show em seus principais canais. Nosso BBB chega aos 24 anos de vida mais forte do que nunca, como o principal engajador de um único assunto nas redes sociais. Mas antes da moda pegar por aqui, como ela surgiu no mundo?
Um ótimo documentário na programação do É Tudo Verdade, o principal festival do gênero no país, é "O Competidor", que reconta a história de um dos primeiros realitys do mundo: o japonês Prize Life, quadro de maior sucesso do Denpa Shonen (Juventude Louca), uma espécie de TV Pirata nipônico. A ideia era pra lá de perversa: confinar um comediante anônimo num apartamento durante meses com um único desafio, sobreviver das comidas e outros brindes ganhos em sorteios promovidos pelas revistas japonesas. Vale dizer que, no Japão, inscrever-se em sorteios e concursos é uma mania nacional.
Prize Life estreou em janeiro de 1998, um ano antes do primeiro Big Brother, criado na Holanda, e mais de dois antes do Survivor americano — que, acredite se quiser, já acumula 46 temporadas e inspirou o No Limite, da Globo. A bizarrice japonesa já reunia um pouco dos dois programas: o confinamento numa casa, de um lado, e a luta pela sobrevivência do outro. Ele também estreou dez meses antes do filme "O Show de Truman", que trazia Jim Carrey como um homem ingênuo vivendo sem saber dentro de um reality.
O escolhido como protagonista foi Nasubi (Berinjela), aspirante a comediante que ganhou esse apelido na infância por ter o rosto muito fino. No filme, o ator conta que sofria bullying na escola por essa característica. Ele só não imaginava que, já adulto, o bullying seria em rede nacional, para todo o país. No primeiro dia, Nasubi é confinado num apartamento — até as roupas ele deveria ganhar em sorteio. Sua genitália era escondida com a imagem digital de uma berinjela. Foram 15 meses de sucesso na TV japonesa, com o país todo acompanhando seus momentos de privação, seus dias de quase loucura e os instantes de euforia quando algum entregador vinha trazer mais um brinde na sua casa.
Dito assim, parece o programa mais imbecil do mundo, sem grande interesse. Mas Prize Life trouxe na sua raiz fatores que estão no DNA de qualquer reality show e são a receita do seu sucesso até hoje. "Coloque qualquer pessoa, famosa ou não, para encarar um desafio e você terá um público interessado em acompanhar isso", diz, no filme, Tsuchiya, o produtor do programa, talvez o primeiro Boninho do mundo. Mais de 25 anos depois, o produtor admite que "era muito louco" na época e não tinha medo de submeter Nasubi à loucura e à quase fome. Ele impôs uma meta: o reality acabaria quando Nasubi conseguisse juntar 1 milhão de ienes (R$ 33,3 mil, na cotação atual) em prêmios.
Mas o sucesso era tanto (e o dinheiro dos patrocinadores, tão imenso) que Tsuchiya não teve dúvida: uma vez conseguido o 1 milhão, com 11 meses de programa, meteu Nasubi num voo rumo a Coreia do Sul, onde ele começaria tudo de novo, agora tendo que sobreviver de prêmios e brindes coreanos. O prêmio: uma passagem de avião da Japan Airlines para voltar para casa. Foram mais quatro meses de confinamento e solidão. Entre as duas "temporadas", a japonesa e a coreana, o pobre homem não fica nem sabendo que passou a ser conhecido e acompanhado por 15 milhões de pessoas — mais tarde, ele contou que nunca foi avisado de que tudo aquilo estava indo ao ar, imaginando tratar-se de um piloto experimental. Só não dá para dizer que houve sequestro, pois a porta estava sempre aberta.
"O Competidor" causa repulsa ao mostrar o que a TV pode fazer com uma pessoa. São cenas de um grotesco sem dó, sempre acompanhadas de uma narração eufórica que transforma em "entretenimento" instantes de pura crueldade. Ao longo dos meses, Nasubi, que já era magro, perde ainda mais peso. Se alimenta até de ração de cachorro, fazendo graça para as câmeras. Num dado momento, para limpar a barra da emissora, um médico o visita para fazer exames e confirmar que sua saúde está ótima. Ao fim da temporada coreana, Tsuchiya tem mais uma ideia "genial": levar Nasubi vendado para o auditório do programa que o acompanhou por mais de um ano, numa apoteose com toda a cara de pegadinha.
E o que um programa tão antigo ainda compartilha com realitys de hoje em dia, como o onipresente BBB 24? Talvez o principal seja a certeza de que não dá para manter por tanto tempo um "programa da vida real" sem dar uns truques e umas roubadas. No caso de Prize Life, é bastante provável que Nasubi não tenha tido tanta sorte assim, e vários prêmios lhe tenham sido entregues para manter o interesse do show. Aqui, fica cada vez mais claro que a edição do BBB vai progressivamente favorecendo os participantes que têm os fãs mais fervorosos nas redes. Se um barraco interessa à audiência, como o ataque de Leidy Elin jogando as roupas de Davi na piscina ou o quebra-pau deste com MC Bin Laden, a punição é até branda e não gera expulsão. E desde 1998, dá para perceber o papel maligno que a montagem exerce sobre o material filmado. Se comportamentos de Nasubi eram até mudados na ilha de edição para aumentar o efeito do drama ou da comédia apresentado, no BBB as edições do programa de terça-feira tentam dar aquela direcionada na opinião pública que o material bruto não permite.
"O COMPETIDOR", de Clair Titley (Reino Unido)
Quinta 4/4 às 20h30 na Cinemateca Brasileira (sessão pra convidados)
Sexta 5/4 às 20h30 no Espaço Itaú Augusta
Sexta 5/4 às 20h30 no Estação Botafogo (Rio de Janeiro)
Sexta 12/4 às 14h no Estação Net Rio (Rio de Janeiro)
Festival É Tudo Verdade
De 3 a 14 de abril nos cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro
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