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Desamparadas, orquestras brasileiras se esforçam para sobreviver à pandemia

A Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) - Cícero Rodrigues/Divulgação
A Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) Imagem: Cícero Rodrigues/Divulgação
do UOL

Amanda Cavalcanti

Colaboração para o TAB

02/09/2020 04h00

O ano de 2020 seria especial para a Orquestra Sinfônica Brasileira. Fundada por três professores da Escola Nacional de Música em 1940, ela completou 80 anos em julho deste ano. Mas, já no primeiro trimestre, a diretora musical Ana Flávia Cabral Souza Leite começava a observar os sinais de que a comemoração do aniversário da orquestra talvez não chegasse a acontecer.

"Quando observamos o impacto do coronavírus na Europa, já começamos a trocar impressões e apreensões na nossa rede de orquestras estrangeiras. Em março, antes mesmo que houvesse o decreto do isolamento social, nós antevimos o que aconteceria no Brasil através da experiência dos países europeus", conta Leite.

Nem todos previmos o mesmo, mas há cinco meses o país vive os efeitos da pandemia do Covid-19 não apenas na saúde pública, mas também na economia, na cultura e no dia-a-dia de todos os cidadãos brasileiros. Os efeitos são especialmente sentidos em atividades que costumavam ser realizadas em grandes números de pessoas: shows, festas, e, é claro, concertos.

A Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) realizou sua última apresentação em 13 de março — mesmo dia em que o governo paulista anunciou a paralisação das atividades dos equipamentos culturais. A OST (Orquestra Sinfônica de Teresina) suspendeu suas atividades uma semana antes da abertura da temporada de 2020, que a orquestra tinha passado os dois meses anteriores preparando.

Os primeiros dias de isolamento, como para muitos de nós, foram de intenso trabalho de adaptação. "Pegou todo mundo desprevenido, não sabíamos como nos adaptar a essa situação. Existia um temor, mas esperávamos que a gente passasse por isso sem tanto trauma", lembra o maestro responsável pela OST, Aurélio Melo, em conversa com o TAB. Para o regente, o mais importante era manter os músicos em movimento durante o período que passassem isolados. "O músico não pode deixar de tocar instrumento porque o prejuízo é muito grande, para ele e para própria orquestra. Então, através de plataformas na internet, mantivemos os ensaios e o repertório, e também o trabalho de colocar a orquestra atuando."


Portas fechadas, abas abertas

A criação de conteúdo online foi uma saída para diversos membros da classe artística - de músicos a comediantes -, e se mostraram também eficientes para manter as orquestras funcionando. A OSESP passou a publicar, semanalmente, as gravações do Concerto Digital Osesp, registros feitos em parceria com a TV Cultura desde 2011. Também veículou a série "Osesp em Casa", em que os músicos de seções da orquestra (como o coro e os violoncelos) gravam-se tocando separadamente em suas casas e são unidos depois, digitalmente. Já a OSB criou a série de transmissões no Facebook "OSB Ao Vivo de Casa", com apresentações de músicos individuais. Algumas delas chegaram a alcançar 6 mil curtidas na rede.

O sucesso do conteúdo online foi tão grande que a orquestra resolveu planejar uma programação especial para a comemoração de seus 80 anos: publicou seis vídeos ao dia, de 17 a 22/08, semana do aniversário. A programação online, segundo Leite, também ajudou a orquestra na questão orçamentária para 2020. "Nossos patrocínios do ano corrente foram renegociados, mas mantidos, graças à programação virtual", diz ao TAB. "Mas, para o ano que vem, ainda não sabemos como vai ficar. A questão orçamentária é sempre um problema. Nosso país não tem política pública para cultura de uma forma eficaz."

Altos e baixos

Desde 2016, crises orçamentárias profundas nas orquestras brasileiras têm sido noticiadas. A própria OSB chegou a cancelar mais de 20 apresentações naquele ano, notícia que precedeu a extinção da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo no ano seguinte, e o cancelamento da edição seguinte da Oficina de Música de Curitiba, também em 2017.

A situação havia melhorado ao longo dos últimos anos — apesar da ameaça constante de mais cortes e "chegada de profissionais motivados por princípios políticos assustadores a postos do governo federal", como disse a especialista em políticas públicas para a cultura Claudia Toni à revista Concerto em dezembro de 2019. A classe artística e universitária parecia estar se unindo para defender os interesses das instituições musicais.

No mesmo texto, a ex-diretora da OSESP também celebrou a inauguração do órgão Grenzing, da USP, além da primeira sala de concertos de Neojibá, em Salvador, e do nascimento da Orquestra Moderna, em São Paulo, todos no ano passado. Ela termina numa constatação quase profética: "O ano não foi espetacular, mas pode ser que tenhamos saudade dele em dezembro de 2020?"

"Na OST, os salários dos músicos, que é pequeno, foram mantidos. Mas as orquestras estão passando grandes dificuldades, principalmente aquelas mantidas por patrocínio. A situação está terrível", lamenta Aurélio Melo.

Perdas na pandemia

O maestro destaca que a situação da OST e de algumas outras orquestras do Brasil é bem diferente das dos grandes centros urbanos. Para ele, a orquestra é parte mais intrínseca da cultura de Teresina e da vida da população. "Nós fazemos turnês pelo Nordeste, tocamos no interior do Piauí, viajamos de ônibus, com equipamento junto. Nós levamos a música da orquestra pra pessoas que jamais teriam condições. Todos os nossos músicos foram formados aqui, cada um é de um bairro da cidade."

Um desses músicos foi Caio Michel Cardoso da Silva. No dia 22 de junho, Caio faleceu, vítima da Covid-19, aos 30 anos de idade, após alguns dias na UTI batalhando a doença. Nas redes sociais, o prefeito de Teresina, Firmino Filho, lamentou a morte do músico. "Um dos mais talentosos músicos da Orquestra Sinfônica de Teresina", escreveu.

"As pessoas choraram com a gente, o acontecimento abalou muito nossa cidade", conta Melo. "Vimos muitas pessoas crescendo [dentro da orquestra] e o Caio foi uma delas."

Algumas outras mortes também abalaram orquestras ao redor do país. Em março, Martinho Lutero Galati de Oliveira, maestro e criador da Rede Cultural Luther King, morreu da doença aos 66 anos. Naomi Munakata, maestrina titular do Coral Paulistano e regente honorária do coro da OSESP, também faleceu de complicações geradas pela doença em março, aos 64 anos.

"Naomi deixou marcas profundas na música coral no país. Ficamos todos muito impactados e entristecidos", diz Marcelo Lopes, diretor executivo da Fundação Osesp.

Profissão de risco

Vazia há 5 meses, a Sala São Paulo voltou a receber os músicos da Osesp no dia 7 de agosto, para uma apresentação sem público que foi transmitida pelo YouTube. Mais algumas serão realizadas ao longo do mês. "Diversas medidas foram tomadas como testagem de todos os funcionários e músicos, reformatação dos desenhos de palco com afastamento entre os músicos, mudança nas suas rotinas de ensaio e de aquecimento, medição de temperatura, uso de máscaras, dentre tantas outras", explica Lopes. "De modo geral, é uma sensação de volta à casa e de poder realizar aquilo que é de fato nosso principal trabalho: produzir música ao vivo na Sala São Paulo. Mas ainda é estranho não ter o público na plateia."

A possibilidade de volta é ainda mais complexa para os corais, já que o vírus é principalmente propagado por gotículas saídas do nariz e boca de alguém infectado. Corais ao redor do mundo, em Berlim e Amsterdã, que se reuniram logo antes do começo do isolamento social chegaram a infectar mais de cem cantores de uma vez só. Já os corais escolares foram banidos no Reino Unido.

Sira Milani, cantora e coordenadora do Coro Luther King, conta que o retorno às atividades é incerto devido à complexidade da questão. "Estamos estudando um programa com tempo reduzido de ensaio e a organização do espaço para garantir distanciamento, ventilação, biombos de matéria plástica, álcool em gel, e uso de máscaras em tempo integral. Mas ainda não temos nenhuma previsão de quando isso será possível."

Apesar de alguns setores — como bares e restaurantes — em alguns estados já estarem experimentando uma reabertura, ainda é difícil saber quando grandes quantidades de pessoas poderão frequentar espaços fechados novamente. O setor de música ao vivo, então, é um dos que mais está à mercê de uma vacina ou, ao menos, de um grande controle de infecções para o retorno de suas atividades. A OSB não retomará atividades ainda este ano; nem mesmo sem público, segundo Ana Flávia Leite.

Para Aurélio Melo, o futuro ainda é turvo, mas já há possibilidade de sonhar com uma volta. "Acho que nós já passamos pelo lado mais escuro, mais difícil. Agora já começamos a ver uma luz lá do outro lado, algumas coisas vão retornando, vamos entendendo o comportamento do vírus", opina o maestro. "A música trabalha em tempo real, não tem como cada um tocar na sua casa. Estamos precisando tocar juntos. Quem sabe, em dezembro, já não possamos fazer o tradicional concerto natalino com a presença de público."

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