Topo
Entretenimento

"Todos os mortos" vai ao passado para entender a sociedade brasileira hoje

Cartaz de "Todos os mortos", filme brasileiro no Festival de Berlim - Reprodução
Cartaz de "Todos os mortos", filme brasileiro no Festival de Berlim Imagem: Reprodução
do UOL

Mariane Morisawa, Colaboração para o UOL

Em Berlim

23/02/2020 18h13

"Todos os mortos", que disputa o Urso de Ouro, é um dos 19 filmes brasileiros, entre longas, curtas e coproduções no 70º Festival de Berlim, um recorde.

"Melhor ainda do que estar na competição é saber que somos parte de um conjunto", disse Caetano Gotardo, co-diretor de "Todos os mortos" com Marco Dutra, em entrevista ao UOL.

Na coletiva de imprensa, ele criticou o que chamou de ataques diretos ao setor audiovisual. "Eles falam de censurar explicitamente. Pessoas foram ameaçadas, mentiras foram ditas, É importante que estejamos todos aqui. É um ato de resistência. Queremos continuar nosso trabalho. Criamos coisas que são importantes."

No início dos créditos, a produção informa que o longa-metragem gerou 700 empregos diretos e indiretos. Desde o início do governo Jair Bolsonaro, o setor a audiovisual reclama de que há centenas de projetos paralisados e promessas de controle do conteúdo.

Na mesma coletiva de imprensa, a produtora Sara Silveira também criticou duramente o governo federal.

"Fomos tolhidos, talvez porque lhes falte inteligência. São tão neoliberais, e não entendem que nós proporcionamos empregos. E proporcionamos ideias, diversidade, sobretudo resistência", disse. "Eu vou dizer uma coisa para o Brasil e para o mundo: Eu não preciso de armas. Preciso de força, de amor, coragem e momentos heroicos para suportar o que estamos vivendo. Mas aguardem. Nós vamos resistir, nós vamos vencer, nós, todas as raças, todos os gêneros, que estamos juntos estamos aqui gritando pela liberdade, democracia, contra a censura e resistência!"

"Todos os mortos" nasceu de uma indagação de Gotardo e de Dutra: por que a sociedade brasileira é do jeito que é e como isso se desenhou?

O filme se passa no fim do século 19, mais precisamente 1899 e 1890, pouco após a abolição da escravidão e durante a criação da República. "Ali foi uma chance que o País perdeu de se reinventar e se reorganizar", disse Gotardo em entrevista ao UOL. "O que houve foi um esforço de manutenção dos privilégios, o que continua até hoje."

Recém-chegadas a São Paulo, Isabel (Thaia Perez) e suas filhas Maria (Clarissa Kiste) e Ana (Carolina Bianchi) não têm mais a riqueza de outrora - o patriarca da família Soares ficou na fazenda de café que era de sua propriedade, mas na qual hoje apenas é um funcionário.

Elas representam uma classe média nascente, que perdeu seus privilégios, inclusive o direito de ter escravos. Maria é freira, mas não pode ir para a clausura, como deseja, pois precisa cuidar da mãe e de Ana, que não se encaixa mais no que se espera de uma moça de sua origem, inclusive no comportamento - ela vê pessoas mortas.

Enquanto isso, Iná (a excelente Mawusi Tulani), ex-escrava da família, tenta também descobrir seu lugar no mundo com o filho João (Agyei Augusto), depois do sumiço do marido.

Sem casa e sem emprego, ela está numa situação vulnerável e continua sendo vista como escrava. O filme aponta, assim, as raízes do racismo e da desigualdade social, e da relação de um com o outro, além de uma classe média que se acredita elite.

Durante os oito anos de execução do projeto, muita coisa mudou no Brasil. "Esse período de gestação foi necessário, tanto para a gente ver as nossas deficiências e faltas, mas também perceber como a realidade à nossa volta estava se transformando ano a ano", disse Marco Dutra.

Gotardo acrescentou: "O filme pensa num passado que se relaciona fortemente com o presente, então, conforme o entendimento do presente foi mudando, o do passado, também. E o filme foi se transformando".

Os dois resolveram que, como são homens e brancos, não podiam partir apenas de sua perspectiva. "É um filme que tenta se abrir às discussões que o mundo apresenta, a pontos de vista variados e à equipe e ao elenco também. A gente quis ser muito poroso à contribuição de outras pessoas", explicou Gotardo.

A equipe foi majoritariamente feminina e diversa, com consultoria de historiadores. "Nós nos demos conta da nossa limitação, vimos que nosso lugar de fala é limitado, que a branquitude é altamente problemática e aprendemos também encarar isso", disse Dutra.

Um dos grandes trunfos do longa é que a cultura africana ganha nuance e tanto destaque quanto a cultura de origem europeia. É um filme de época que não romantiza a história, inclusive porque o final do século 19 conversa ativamente com o século 21.

"Era interessante ver as camadas de tempo. Que fosse 1899-1890, mas que fosse hoje também", disse Dutra. Aqui e ali, elementos contemporâneos se infiltram no longa-metragem - primeiro na forma do barulho de um avião passando, e mais explicitamente conforme ele vai avançando.

O filme, cheio de simbolismos, aposta num tom não-naturalista que incomodou muitos espectadores na primeira sessão de imprensa na noite de sábado, especialmente no caso das mulheres da família Soares, que parecem estar numa encenação, talvez como um reflexo dos papeis que estavam acostumadas a representar.

As visões de Ana distraem do tema central - em geral, o longa vai melhor quando aposta nas sutilezas da interação entre os personagens. Mas, mesmo que nem sempre funcione, "Todos os mortos" faz uma investigação séria, sensível e bem-vinda da formação da sociedade brasileira - um dos muitos papeis que o cinema pode ter.

Entretenimento