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O celular sabe tanto de você que já pode 'ler' seu pensamento

Mulher passa olhando para smartphone e mal percebe estátua de Marilyn Monroe - AFP
Mulher passa olhando para smartphone e mal percebe estátua de Marilyn Monroe Imagem: AFP
do UOL

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB

10/12/2019 04h00

Pense em um produto que você precisa comprar. Pode ser uma peça de roupa, um remédio, uma passagem de avião. É bem provável que, em algum momento no futuro, você esteja usando a internet e encare um anúncio exatamente desse produto que estava na sua mente há dias.

Nossa primeira reação costuma ser a de pensar que o celular está nos ouvindo. Essa hipótese é veementemente negada pelas empresas de tecnologia, e testes independentes não conseguiram detectar nenhum tipo de espionagem de som por parte dos aparelhos enquanto seu microfone está desativado. Apesar disso, denúncias já mostraram que as Big Techs armazenavam falas de usuários para treinar suas inteligências artificiais (sem processar esses registros, justificam as empresas). Resta uma pergunta: será que as empresas de tecnologia estão lendo nossas mentes?

O questionamento parece ridículo, mas a resposta é: sim e não, dependendo do seu ponto de vista. Universidades em todo o mundo (inclusive no Brasil), o Exército dos Estados Unidos e até mesmo o Facebook estão investindo em tecnologias de interface cérebro-computador (ICC) para digitalizar nossos estímulos cerebrais.

Esses avanços são incríveis do ponto de vista da medicina, mas também podem ser assustadores. Para o neuromarketing, saber literalmente o que o consumidor está pensando é um sonho, afirma Tiago Souza, professor de marketing do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. E deixar essas informações nas mãos das empresas não deve ser uma boa ideia. "A ética é pensada dentro do marketing, mas ética é diferente de lei. Sendo muito honesto, o marketing costuma a trabalhar no limite da lei", diz o professor.

Pensamentos públicos

Por enquanto não há nada de concreto no sentido de ler um pensamento do zero, garantem os neurocientistas. "A questão do pensamento consciente é chamada de Santo Graal da neurociência. Todo mundo quer achar, mas ninguém sabe como acontece", afirma Gabriela Castellano, pesquisadora do Brainn, o Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia da Fapesp, e também professora do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp.

Por outro lado, num sentido mais abstrato, a tecnologia já é capaz de prever diversos dos nossos comportamentos e descobrir coisas que não contamos para ninguém. Coisas que queremos manter restritas à nossa própria mente.

Em 2012, a Target (loja de departamento dos Estados Unidos) revelou a gravidez de uma garota adolescente antes de ela contar para os próprios pais. A empresa enviou um cupom de descontos para roupas de bebê e berços baseado no histórico de compras para o e-mail da garota. O pai dela viu, e ela acabou confessando que estava mesmo grávida.

Celular - Rodion Kutsaev/Unsplash - Rodion Kutsaev/Unsplash
Imagem: Rodion Kutsaev/Unsplash

"Nossos pensamentos no sentido mais puro não são necessários quando uma empresa ou organização tem um espectro extremamente amplo de dados muito específicos que podem ser usados para definir perfis sobre nossos gostos, preferências. Elas sabem o que a gente vai escolher com um nível muito alto de precisão", explica Luca Belli, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio, onde leciona.

Ele alerta que a população em geral precisa estar informada sobre o nível de "leitura de pensamento" ao qual somos submetidos hoje — uma verdadeira invasão de privacidade, muitas vezes consentida. Afinal, as empresas se valem dessas ferramentas para gerar dinheiro.

Até dá para esconder algumas informações do Instagram, mentir a sua localização para o Facebook ou forjar um emprego no LinkedIn. Mas o neuromarketing sabe que não dá para enganar os buscadores, afirma Souza. "Os buscadores são os locais mais importantes para entender como funciona a cabeça do consumidor do século 21. Ele não pode chegar para o Google e mentir que mora num bairro chique. Se fizer isso, o mapa não vai dar as direções corretas para casa", exemplifica. É neles que procuramos, sob a ilusão da privacidade, respostas para facilitar nossa vida — desde questões simples como um trajeto na cidade até as mais íntimas.

Todas as informações que fornecemos ainda são voluntárias (quando não são vendidas por terceiros, claro). É preciso digitá-las, passar o CPF para o caixa da farmácia, concordar com os termos de uso mesmo sem ler, aceitar os cookies? E se no futuro essas empresas conseguirem entrar na sua mente e entender seus pensamentos, literalmente? Como explicou Gabriela Castellano, do ponto de vista da neurociência, a leitura de pensamentos ainda não é possível, mas já está em estudo. E o Facebook é um dos financiadores.

Avanço científico

Dentro das universidades e dos centros de pesquisa, o objetivo de desenvolver um software capaz de "ler pensamentos" é permitir que pacientes com alguma dificuldade ou impossibilidade de comunicação consigam voltar a se expressar. A ideia é encontrar métodos menos invasivos e mais eficientes de devolver o poder da fala a essas pessoas, seja por texto ou mesmo por voz sintetizada.

"Você mostra imagens para a pessoa e monitora quais regiões do cérebro foram ativadas. Depois, mostra imagens similares e, através da ativação de determinadas áreas você descobre para qual imagem a pessoa está olhando", explica Gabriela.

Jovens usam celular para quase tudo, menos para ligar para as outras pessoas - Folhapress - Folhapress
Imagem: Folhapress

Isso serve, por exemplo, para permitir a comunicação de pacientes em estado "locked in", ou seja, que têm consciência, mas não conseguem mover o corpo. De forma simplificada, Stephen Hawking, por exemplo, se comunicava escolhendo palavras dessa forma — quando a palavra que ele queria usar aparecia na tela, o computador reconhecia a ativação no cérebro e a adicionava ao texto. A tecnologia usada por ele foi aprimorada com inteligência artificial e permite outros recursos, mas ainda depende da seleção de texto em tela, ou seja, não é capaz de ler pensamentos do zero.

A pesquisa mais avançada nesse sentido é da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF). Em julho de 2019, a equipe de neurocientistas dedicada ao projeto publicou os resultados de um estudo na revista científica Nature, indicando que conseguiu gerar fala a partir de ondas cerebrais usadas para controlar um trato vocal virtual. Na prática, isso significa que voluntários conseguiram responder mentalmente a perguntas, e um computador leu essas respostas e as reproduziu em "voz alta" com um ritmo de fala natural.

As perguntas eram de múltipla escolha e os participantes tinham uma gama limitada de respostas para escolher, tornando o trabalho do computador mais objetivo. Mas é inegável que estamos caminhando no sentido de entender o que se passa dentro do cérebro e como decodificar as conexões entre os neurônios sem o uso da fala ou da escrita.

Big techs estão de olho

Enquanto os objetivos da equipe médica ficam restritos à área da saúde, as empresas de tecnologia têm uma ideia bem diferente de como essa tecnologia pode ser usada. O Facebook apoia a pesquisa da UCSF e tem um norte bem claro, revelado na conferência F8 em 2017: permitir que as pessoas possam digitar usando apenas o pensamento.

Regina Dugan, VP de engenharia do Facebook, explicou na conferência que a ideia é não precisar se desconectar da tecnologia para focar na "vida real". O Facebook quer que você envie uma mensagem no Messenger para um amigo durante uma festa sem precisar olhar para o celular e, consequentemente, perder a comunicação com quem está ali na sua frente.

Jornalistas de tecnologia em evento da Amazon - Grant Hindsley/AFP (20.09.18) - Grant Hindsley/AFP (20.09.18)
Jornalistas de tecnologia digitam em computadores durante evento da Amazon
Imagem: Grant Hindsley/AFP (20.09.18)

Em 2017, quando a empresa apresentou a ideia, o escândalo da Cambridge Analytica não havia sido revelado e Mark Zuckerberg ainda não tinha sido convocado a depor no Senado dos Estados Unidos sobre a violação da privacidade dos usuários. Mesmo assim, Dugan já tentou acalmar os anseios que pudessem surgir em relação à privacidade dos nossos pensamentos.

Na conferência, ela disse que a ideia é que a máquina seja capaz de ler apenas aquilo que você escolher colocar no 'centro de fala' do seu cérebro, protegendo, portanto, o que você quiser manter privado. "Para deixar claro, nós não estamos falando em decodificar seus pensamentos aleatórios. Isso é mais do que qualquer um de nós se importa em saber, e não é algo que alguém deveria ter o direito de saber", disse Dugan. Como a tecnologia ainda não existe, por enquanto essa intenção não passa disso: uma promessa que nem temos os meios para desenvolver ainda.

O fato é que há investimento nesse sentido, e não sabemos como as ferramentas serão usadas quando (e se) estiverem disponíveis. Belli, da FGV, reforça que os cidadãos precisam ser educados, inclusive nas escolas, sobre o uso de seus dados pessoais e lamenta que essa ainda não seja uma preocupação no Brasil. "Eu digo com muita frustração, como jurista, que não adianta falar simplesmente que os dados são parte da nossa personalidade, são direitos fundamentais. As pessoas não ligam. Se começarmos a mostrar que dados pessoais são dinheiro, as pessoas talvez fiquem mais cuidadosas", avalia.

Belli dá como exemplo o uso do CPF nas farmácias. Se o consumidor pensar que essa informação está sendo usada pelos planos de saúde para traçar perfis de consumidor e encarecer mensalidades, talvez pense duas vezes em querer um pequeno desconto na compra em troca da informação.

A leitura de pensamentos seria um passo além. Se por um lado a aura de ficção científica empolga, por outro, merece atenção. "Sem sombra de dúvidas o marketing vai adorar se algum dia chegarmos a esse nível de leitura da mente do consumidor. Mas eu, pessoalmente, acho que vai perder a graça ser humano. A dúvida é sempre mais prazerosa do que a certeza, do ponto de vista das nossas relações pessoais", resume o pesquisador da FGV.

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