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A estação de trem que mudou a história da Índia

Plataforma de trem de Pietermaritzburg - BBC Travel
Plataforma de trem de Pietermaritzburg Imagem: BBC Travel

Kalpana Sunder - BBC Travel

19/04/2019 16h38

Depois que foi expulso de um trem na África do Sul, Mohandas Karamchand Gandhi dedicou sua vida a combater a desigualdade racial por meio da resistência pacífica.

Era um dia chuvoso e úmido na plataforma de trem de Pietermaritzburg, a uma hora da cidade portuária de Durban, na África do Sul.

A estação de tijolos vermelhos em estilo vitoriano do século 19, com teto de ferro chanfrado e bilheterias de madeira, estava silenciosa. Puxei meu casaco para mais perto de mim e imaginei como teria sido estar aqui em uma certa noite mais de um século atrás.

Em 7 de junho de 1893, Mohandas Karamchand Gandhi, na época um jovem advogado, estava a caminho de Durban para Pretória como representante de seu cliente, um comerciante chamado Dada Abdulla.

Quando o trem parou em Pietermaritzburg, Gandhi recebeu ordens do condutor para sair do vagão da primeira classe, reservado para passageiros brancos, e ir para os vagões para viajantes das classes mais baixas. Quando Gandhi se recusou, mostrando seu bilhete de primeira classe, foi expulso do trem sem a menor cerimônia.

Uma placa na plataforma marca o local aproximado onde ele foi empurrado para fora do vagão do trem com sua bagagem. "Este incidente mudou o curso de sua vida", diz.

Gandhi passou aquela noite fria de inverno na minúscula sala de espera, sem aquecimento. "Meu sobretudo estava na minha bagagem, mas não ousei pedir para não ser insultado novamente, então, me sentei e fiquei tremendo", Gandhi escreveu mais tarde em sua autobiografia A História das Minhas Experiências com a Verdade.

Imigração e discriminação

Gandhi se mudou de Mumbai para a África do Sul em 1893, depois de aceitar um emprego temporário em uma empresa indiana sediada em Natal, no nordeste da região do Transvaal, que foi colonizada por bôeres (descendentes de colonizadores holandeses e huguenotes do século 17), depois que a Grã-Bretanha estabeleceu-se mais ao sul.

A população indiana de Transvaal vinha crescendo várias décadas antes de Gandhi chegar. Em um acordo feito em 1860 com o governo da Índia, o governo do Transvaal prometeu ajudar os imigrantes indianos a se estabelecerem em troca de mão de obra para os campos de açúcar da região.

Mas, mesmo depois de cumprir o contrato, os indianos não estavam totalmente integrados à sociedade: as regulamentações implementadas pelo governo controlado pela minoria branca impunham taxas extras aos novos cidadãos indianos.

Depois de chegar à África do Sul, Gandhi foi rapidamente exposto à discriminação racial: poucos dias antes de embarcar no trem para Pretória, ele havia se retirado de um tribunal de Durban depois que o juiz exigiu que ele removesse seu turbante.

Mas aquele momento na plataforma do trem de Pietermaritzburg marcou um ponto de virada, um catalisador, quando Gandhi tomou a importante decisão de lutar contra a discriminação racial da qual foi alvo.

"Seria covardia voltar correndo para a Índia sem cumprir minha obrigação", escreveu ele em sua autobiografia. "O problema que enfrentei foi superficial - apenas um sintoma da doença profunda do preconceito de cor. Eu deveria tentar, se possível, erradicar este mal e enfrentar as dificuldades deste processo."

"Esta foi sua epifania, quando o ferro entrou em sua alma - até então, ele era gentil e calmo", disse Shiney Bright, um guia turístico local.

O nascimento da 'satyagraha'

Após o incidente de Pietermaritzburg, Gandhi recusou-se a se submeter à intolerância, optando, em vez disso, por se opor pacificamente a políticas discriminatórias, organizando greves e marchas para combater regras eleitorais e condições de trabalho intoleráveis. Ele acreditava que, ao permanecer na África do Sul, podia observar a verdadeira natureza da opressão racial e combatê-la com eficácia.

Foi a partir disso que surgiu o conceito de satyagraha. Com o significado de "agarrar-se à verdade", a filosofia da satyagraha envolve táticas não violentas para conquistar a mente de um oponente e criar uma nova harmonia entre os dois lados de um conflito.

Em 1907, quando o governo do Transvaal aprovou um decreto que exigia o registro da população indiana, Gandhi organizou protestos não violentos com seus compatriotas.

Embora seus atos de resistência o tenham levado à prisão em quatro ocasiões distintas, Gandhi teve sucesso ao negociar com o governo. Como resultado, foi aprovada em 1914 uma lei que eliminava um imposto extra sobre os cidadãos indianos e reconhecia a validade dos casamentos indianos.

Após seu retorno à Índia em 1914, Gandhi empregou a satyagraha para protestar contra a obrigatoriedade de indianos de servirem às Forças Armadas britânicas durante a Primeira Guerra Mundial; e, novamente, após a Segunda Guerra Mundial, para negociar a independência da Índia em relação à Grã-Bretanha, oficializada em 1947.

As exibições de resistência pacífica de Gandhi influenciaram significativamente o ativista americano de direitos civis Martin Luther King Jr. e o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.

"Os valores de tolerância, respeito mútuo e unidade os quais defendeu e pelos quais se pautou tiveram profunda influência em nosso movimento de libertação e em meu próprio pensamento", disse Mandela. "Eles nos inspiram hoje em nossos esforços de reconciliação e construção da nação."

Estação virou local de peregrinação

Hoje, a estação de Pietermaritzburg é um local de peregrinação para indianos que vêm prestar homenagem a Gandhi no local onde ele foi expulso de um trem. Durante uma visita em 2016, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, escreveu no livro de visitas do museu: "Um acontecimento em Pietermaritzburg alterou o curso da história da Índia".

A pequena sala de espera agora abriga um museu dedicado a contar a história daquela noite em 1893 e das duas décadas que Gandhi passou na África do Sul. Painéis informativos e telas interativas revestem as paredes, e fotografias em preto e branco de Gandhi adornam a janela. Sentei-me em um banco de madeira no centro da sala e contemplei a noite.

Com seus grandes edifícios da era vitoriana, como a icônica prefeitura de tijolos vermelhos, a capital da Província de KwaZulu-Natal se parece muito com o que haveria por aqui quando o trem de Gandhi entrou na estação.

Enquanto observava as silhuetas de pedestres do lado de fora da janela, meus olhos lacrimejaram quando imaginei Gandhi num banco duro parecido com o qual eu estava sentado, preparando-se para a luta que definiria sua vida e as vidas de centenas de milhões de outras pessoas. Cercado por sua imagem, fiquei impressionado com o que ele havia feito pelo meu país e meu povo.

Em junho de 2018, para comemorar o 125º aniversário deste acontecimento, a ministra das Relações Exteriores da Índia, Sushma Swaraj, visitou Pietermaritzburg, refazendo a jornada de Gandhi. Após chegar à estação, Swaraj inaugurou uma estátua de Gandhi na entrada da plataforma.

Intitulada "Nascimento de Satyagraha", a escultura de duas faces feita no Museu Digital Mahatma Gandhi, na Índia, mostra Gandhi como um jovem advogado vestindo terno e gravata de um lado, e um Gandhi mais velho de óculos usando uma tradicional veste indiana do outro.

O evento de dois dias incluiu uma reencenação do momento em que Gandhi foi expulso do trem, bem como um banquete na prefeitura, iluminado pelas cores da bandeira indiana.

A África do Sul abriga hoje a maior população indiana do continente africano, e sua influência no país é nítida.

Hoje, os sul-africanos indianos de segunda e terceira geração têm negócios, trabalham no governo e jogam nas equipes esportivas profissionais da África do Sul - e tudo começou em uma noite fatídica na estação de Pietermaritzburg.

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