Como a energia gasta para extrair bitcoin pode ameaçar o meio ambiente
A principal discussão sobre bitcoin continua a ser a sua confiabilidade enquanto investimento, mas a criptomoeda já levantou outra bandeira amarela, quase vermelha para alguns: o alto consumo de energia elétrica no processo de mineração e o seu consequente impacto no meio ambiente. De acordo com pesquisa da organização Power Compare, a estimativa anual média de energia gasta nesse processo - entre 55,6 e 73,2 TWh, o terawatt-hora - já é superior ao gasto de 175 países, incluindo alguns de tamanho médio, como Irlanda e Nigéria, que consomem 25 TWh e 24 TWh, respectivamente.
Há quem veja esse quadro como contornável e até como ponto de partida para reforçar políticas de sustentabilidade, mas o fato é que a bitcoin honra o conceito de "mineração" que carrega. Pesquisa publicada em novembro de 2018 pela "Nature" revelou que a energia gasta para a produção da criptomoeda é mais do que o dobro da usada para extrair cobre, ouro ou platina. Embora seja virtual, a moeda exige uma quantidade considerável de recursos físicos para sua existência. No fim do dia, seria o bitcoin uma combinação de energia elétrica e poder computacional codificados em um "criptocommodity"?
A conscientização de que há esse lastro físico da moeda, que é vendida como exclusivamente digital, é o ponto a ser destacado por Lucas Girard, mestre pela FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da mesma universidade. "O lastro da operação é o poder da computação, que é hardware, é software rodando com energia elétrica que vem da natureza", afirma. "No setor tecnológico há esse discurso de disrupção, mas quem continua oferecendo a infraestrutura básica é o meio ambiente. Quem paga a conta, no fim, é a natureza", completa.
Mineração China-Paraguai
Para entender melhor como funciona essa cadeia, peguemos como exemplo o que ocorre em um país vizinho e todos os agentes envolvidos. Em galpões no Paraguai, centenas de computadores chineses são instalados para resolver equações que revelam um código específico capaz de liberar bitcoins. Essas máquinas, desenvolvidas e otimizadas exclusivamente com o objetivo de conquistar criptomoedas, são conhecidas como 'mineradoras', uma vez que o processo de extrair bitcoins do código matemático é conhecido como 'mineração', como falamos acima. Os galpões, por sua vez, são chamados de 'fazendas de bitcoin' e são montados em países que oferecem energia elétrica barata e facilidades para importação, caso do país sul-americano.
Quando um computador descobre o número certo em meio a códigos aleatórios, ele libera o dinheiro. Esses códigos são programados para se tornarem cada vez mais difíceis de serem descobertos. Por isso, ao passo em que fica mais complexo liberar uma nova bitcoin, tornam-se necessários não apenas mais, mas também computadores mais poderosos. O resultado é um crescente consumo de energia elétrica, que é convertido na criptomoeda. É uma maneira de controlar sua disponibilidade e, com isso, regular sua escassez de mercado.
"Do ponto de vista ambiental, esse sistema é ruim, porque boa parte da energia elétrica é gasta conferindo se os valores estão corretos e chegando à conclusão de que não estão. A maior parte dos resultados são falso-positivos", afirma Lucas Lago, mestre em Engenharia da Computação na Politécnica da USP e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da mesma instituição. "Por outro lado, é esse sistema que garante a segurança da bitcoin. Para mudar tudo, seria necessário poder de processamento muito maior do que todo o resto da rede. É a segurança que faz gastar energia", completa.
Mais volátil, mais lixo
Rodrigo Pimenta, engenheiro elétrico pela USP e pesquisador de redes neurais e inteligência artificial, é um dos brasileiros que constrói fazendas de bitcoin no Paraguai. Sua empresa, a Hubchain, desenvolve soluções em blockchain, a tecnologia por trás das criptomoedas - entre elas, o aluguel de máquinas para mineração.
A empresa de Pimenta compra computadores criados para essa finalidade. Eles são importados da China para o Paraguai, que tem taxas de importação de apenas 15% e o custo da energia elétrica é de aproximadamente US$ 0,04. Lá, a HubChain instala e mantém os computadores funcionando em galpões. O cliente é dono de todo o dinheiro obtido com as máquinas, mas paga uma 'taxa de condomínio' para o funcionamento do sistema, além de arcar com os custos do complexo e de sua instalação.
"O cliente apenas paga e nós preparamos todo o processo. Compramos um terreno, importamos as máquinas, instalamos com o sistema operacional, fazemos a manutenção operacional etc", explica Pimenta. Segundo ele, há clientes que pedem até 1.200 computadores a serem instalados em um galpão.
No entanto, como o preço do bitcoin é volátil, é comum que, ao cair o valor da moeda, o custo para minerá-la não compense. Nesse caso, segundo Pimenta, o cliente tem quatro opções:
1 - continuar minerando na esperança de a moeda voltar a se valorizar;
2- pagar para a máquina ficar armazenada;
3 - revender para a mineradora;
4 - descartar.
A última opção, muito comum, faz com que os computadores, repletos de sílica, sejam destinados direto a um lixão. "Ainda não há um processo de desmontar a máquina. As peças não podem ser reaproveitadas", afirma Pimenta.
Novamente, como o preço da moeda varia muito, o jogo nem sempre fica equilibrado. Hoje, a bitcoin vale pouco mais de R$ 13 mil, mas em dezembro de 2017, no auge da especulação, chegou a valer R$ 63 mil. Quanto mais sobe o seu valor, mais compensa gastar energia para minerá-la. E vice-versa. Em novembro de 2018, quando houve grande queda nos preços da bitcoin, chegaram a desligar 600 mil computadores de mineração, segundo a rede de mineração chinesa F2Pool.
Mas o descarte dos computadores é parte do problema. A maior parte da discussão ainda é centrada no consumo energético.
O bitcoin é um problema?
De acordo com a página Digiconomist, a estimativa atual para o consumo de energia elétrica para geração de bitcoin está em 46,9 TWh por ano. Mas esse número varia de acordo com a valorização da moeda. Em novembro de 2018, por exemplo, a estimativa era de 71,9 TWh para o ano. De acordo com o Power Compare, a energia gasta para mineração de bitcoins é equivalente ao de 750 milhões de pessoas - aproximadamente 10% da população. Por outro lado, é menos de 1% do consumo de energia elétrica do planeta como um todo.
Outro estudo, também publicado na Nature aponta que, caso a tendência se mantenha e a bitcoin se torne tão popular quanto cartões de crédito, as emissões de gás carbônico para gerar toda essa energia podem fazer com que a temperatura da Terra suba 2ºC em três décadas. Vale lembrar: os signatários do Acordo de Paris se comprometeram a manter o aumento abaixo de 2ºC até 2040.
Sim, a mineração de bitcoin consome muita energia elétrica e é possível que ela consuma mais no futuro. Mas, até que ponto isso é um problema? Para a economista da Universidade de Nottingham, Katina Kelly, há três pontos que estão sendo desconsiderados:
1 - toda tecnologia tende a se tornar mais eficiente com o tempo;
2 - a bitcoin pode empurrar a demanda por energia renovável;
3 - bancos também consomem muita energia.
Kelly, no entanto, não descarta que a bitcoin possa ser danosa para o planeta. A questão, segundo ela, é que a moeda é consequência, não causa. A discussão deveria ser centrada em um uso mais sustentável da energia elétrica.
Andreas Antonopoulos, autor do livro "Internet of Money" e um dos maiores defensores do bitcoin, argumenta na mesma linha e vai além: segundo ele, mineradoras de bitcoin podem incentivar o uso de energia limpa. Isso porque muitas fontes de energia renovável têm energia de sobra, que não pode ser transmitida a locais distantes. Ao instalar mineradoras próximas a essas fontes, é possível converter aquela energia em dinheiro.
Pimenta tem visão semelhante e, inclusive, quer implementá-la no Brasil e no Paraguai. Ele diz que, no Nordeste, por exemplo, há muita energia eólica disponível, mas que não foi conectada a redes de distribuição. "No fim há força excedente com custo zero", diz. "Essa energia é usada de forma sazonal e, boa parte do tempo, fica ociosa", completa.
Para ele, a solução é clara: instalar mineradoras de bitcoin conectadas a essas fontes e reverter os ganhos para fazer a economia girar. "Poderia ser uma solução social, oferecendo parte desses ganhos para a comunidade local e reinvestindo nesse espaço", afirma o executivo. Ele diz já ter mapeado os pontos de energia excedente para fazer uma proposta aos empreendedores e governos locais.
Mas a maior oportunidade nesse sentido está no Paraguai. Isso porque em 2023 será revisado o Anexo C do Tratado de Itaipu, que prevê justamente a compra da energia excedente paraguaia pela Eletrobrás. Dependendo dos modelos que surgirem para negociar a energia excedente, uma solução é justamente utilizá-la para minerar bitcoins. Pimenta estuda a possibilidade de criar um vale de mineração próximo à usina, e que receba incentivos do governo local enquanto atividade industrial.
Caso a visão de empreendedores como Pimenta, Antonopoulos e Kelly se concretize, é possível que o bitcoin se torne uma forma de promover a energia renovável ao torná-la mais economicamente viável. Em tese, deixaria de ser um algoz ambiental.
Para Girard, o cenário só é viável quando se discutir do ponto de vista regulatório. "A infraestrutura de telecomunicações é regulada pela União Internacional de Telecomunicações [com sede na Suíça]. Todo esse ambiente tecnológico é pesadamente regulado e discutido. Com criptomoedas também deve ser", defende. Para ele, é necessário um pensamento legislativo para unir mineradores de bitcoin em torno da pauta da energia renovável. "Como fazer as pessoas compartilharem esse imaginário? Um caminho seria algum órgão começar a colocar requisitos e critérios para a exploração das criptomoedas", completa.
Moedas mais econômicas
Para além de um uso menos predatório da energia elétrica consumida pela mineração, há uma outra discussão em vigor: será possível criar um tipo de moeda que também seja segura, descentralizada, mas que não consuma tanta energia - independentemente de ser renovável? Para alguns estudiosos, sim.
Para entender essa perspectiva, é necessário colocar em contexto duas formas de minerar criptomoedas. A mais usada, inclusive na bitcoin, é a chamada "proof of work", a "prova de trabalho". Do outro lado do ringue, há a desafiante: a "proof of stake", a "prova de posse".
O sistema da "proof of work" exige que, quanto mais moedas existirem, mais poder computacional se faz necessário. É uma forma de evitar que alguém domine 51% da rede - uma vez que essa pessoa teria que ter mais poder de processamento que todo o resto, o que é virtualmente impossível. Se por um lado esse sistema traz mais segurança, por outro faz com que o uso de energia cresça muito.
A alternativa mais discutida entre os entusiastas das criptomoedas é justamente a "proof of stake", que incentiva o usuário a se engajar mais com a rede, mas sem necessariamente minerar moedas. "Quanto mais moedas você tem naquela rede, mais você participa dela", explica Lago.
No "proof of stake", a pessoa é remunerada de acordo com a relação entre quantas moedas ela tem e há quanto tempo. "É como deixar ele rendendo em um banco", afirma Pimenta. Assim, há um incentivo para você não trocar tanto seu dinheiro e, consequentemente, reduz a volatilidade e a necessidade de investir mais em computadores para gerar moedas.
Algumas criptomoedas alternativas já apostam na "stake". Há discussões para algumas criptomoedas famosas, como a Ethereum, aderirem a esse modelo. Mas, enquanto correm discussões sobre como aproveitar energia renovável ou criar modelos de criptomoedas mais sustentáveis, a corrida pela bitcoin continua com todas as suas flutuações. A questão é: quem irá se beneficiar com cada modelo?
"Por hora, as bitcoins não usadas para muito além de especulação financeira. Mas estamos em uma fase muito experimental da tecnologia e aprendendo como ela vai funcionar. A blockchain é a primeira forma que criamos e, por ser a primeira, possivelmente é a pior. Virão outras", afirma Lago.
O importante, como lembra Girard, é ter a noção de que "um algoritmo não é um pai de todos benevolente, que resolve todos os seus problemas. Ele expressa os valores de quem os desenvolve", explica. E, por isso, a cada modelo que surgir, a pergunta que deve ser feita pela sociedade, desenvolvedores e reguladores é: quem irá lucrar?
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