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No mês em que o samba faz 100 anos, Riachão completa 95 com muita malandragem

Fernanda Fadel

Do BOL, em Salvador (BA)

14/11/2016 08h09

"Olha, eu fico aqui ouvindo as minhas músicas no rádio e chego a chorar. Eu quero me aguentar, mas... Ah!, É um sentimento tão grande que o olho molha. Só você vendo, fofinha!", conta Clementino Rodrigues, conhecido também como Riachão, sambista baiano, eterno malandro, que completa 95 anos nesta segunda-feira (14). 

Dono das composições "Chô Chuá (Cada Macaco no Seu Galho)", "Vá Morar Com o Diabo", "Retrato da Bahia" e outras, o artista se emociona ao lembrar de tudo o que fez em sua vida, com idade bem próxima à da existência centenária do samba na história brasileira. No próximo dia 26, o samba chega ao marco de 100 anos com o registro da música "Pelo Telefone" (1916), de Donga, na Biblioteca Nacional. 
 
De boina vermelha, óculos escuros, camisa estampada com alguns dos botões abertos, toalha no pescoço, pulseiras de metal e elásticos coloridos cobrindo os punhos, Riachão conta ao BOL que a música nasceu com ele. "Com apenas nove aninhos de idade, eu já cantava em festas aqui no bairro [ele se refere ao Garcia, distrito de Salvador onde nasceu e de onde nunca se mudou]. Todo aniversário tinha alegria nos lares pobres e, nessa época, eu cantava para as outras criancinhas as músicas que eu ouvia na vitrola", conta, arrematando a lembrança com o trecho de uma dessas canções que musicaram os tempos de garoto: "Oi, trepa no coqueiro, tira coco, gipi-gipi, nheco-nheco, no coqueiro oi-li-rá!", uma composição do carioca Ary Kerner, de 1929.
 
Clementino, que nada!
 
O nome de batismo ficou para trás, e Clementino se transformou em Riachão na juventude. "Bom de briga", o baiano passou a ser assim chamado porque muitas vezes nas rixas que arranjava com a molecada, costumava ouvir: "Você é algum riachão que não se possa atravessar?".
 
"Então esse se tornou o meu nome de malandro ao longo da vida", revela o artista. 
 
"Contado parece mentira"
 
Com quinze anos de idade, trabalhando como alfaiate em Salvador (BA), Riachão viveu um episódio que determinou sua estreia como letrista. “Eu me lembro que passei pela Rua da Misericórdia para comprar material de alfaiataria e, quando cheguei bem defronte a uma loja, eu vi um pedacinho de revista caído no chão e li: ‘Se o Rio não escrever, a Bahia não canta’. Comprei o que precisava, fui para a oficina, trabalhei o resto do dia e fiquei com aquela frase na mente. Voltei para casa e o que li continuou no meu juízo. Eu, que vivia cantando as músicas do Rio de Janeiro, né? Menina, no outro dia, Deus mandou a primeira música para mim! Que alegria na minha vida quando eu comecei a cantar!”, conta, com as mãos voltadas para o alto. 
 
Batucando com as mãos cheias de anéis, Riachão cantarola um trechinho de sua primeira composição, ritmando as batidas na madeira do sofá: "Eu sei que sou malandro, sei. Conheço meu proceder. Eu sei que sou malandro, sei. Conheço meu proceder. Deixa o dia raiar, deixa o dia raiar. A nossa turma é boa, ela é boa, somente para batucar".

As toalhas de Riachão são uma tradição de seu visual de malandro - João Alvarez/BOL - João Alvarez/BOL
As toalhas de Riachão, postas no pescoço, compõem o figurino de malandro de Riachão
Imagem: João Alvarez/BOL
Sem formação escolar, Riachão afirma que as letras chegam até ele em uma inspiração extraordinária; com poder que considera "divino", as letras "aparecem" inteiras e de uma vez só, sem que ele tenha que burilar palavras ou esmerar a construção de frases."Eu tenho sempre por dizer, eu não faço nada. Eu não tenho escola, não pego o papel para fazer nada. Tudo quem me manda é meu lindo Deus. Vem do céu, entra na minha mente e eu canto. Contado parece mentira", explica.

E, segundo Riachão, tem sido assim até hoje. Ele intitula suas obras como "canções sobre o cotidiano da humanidade". "A minha música é baseada no que estou vendo. Às vezes não é o que acontece comigo, mas o que acontece com alguém", pontua. 
 
O "galho" de Riachão é na Bahia!
 
"Chô Chuá (Cada Macaco no Seu Galho)", uma canção de Riachão que foi um marco no período da ditadura do Brasil, surgiu de uma expressão que escutou em um papo alheio. "Ouvi uma conversa de antigos, o pessoal do tempo de meu pai, e aí houve uma confusão, eles discutiram e alguém disse: 'Ah! Cada macaco no seu galho!'. Deus me mandou essa música a partir disso", conta.
 
De cunho popular, a expressão "cada macaco no seu galho" quer dizer que se respeite o espaço do outro, ou simplesmente "cada um na sua".
 
Exilados em Londres, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil escolheram a música de Riachão para oficializar a volta deles para o Brasil nos anos 70; a dupla também gravou "Chô Chuá" em dois álbuns: "Expresso 2222" (1972), de Gil, e "Tropicália" (1993), de ambos. 
 
"Quando acabou o exílio de Caetano mais Gil e eles voltaram ao nosso querido Brasil, eles estavam procurando uma música aqui na Bahia que caísse bem para o retorno deles. Foi reunido vários cantores convidados por eles e então, entre meus colegas, cada um cantou suas músicas próprias. Eu fui convidado e quando cheguei, lembro que Caetano falou para os amigos dele: 'Este homem é a alegria aqui da terra!'. Quando eu comecei a cantar: 'Chô, chuá, cada macaco no seu galho. Chô, chuá, eu não me canso de falar. Chô, chuá, o meu galho é na Bahia, o seu é em outro lugar'... a equipe deles que estava assistindo... Nossa, que grito que a turma deu! 'É essa, malandro! É essa e não tem outra!'", relembra o artista, interpretando o momento fincado. 
 
"A mulher não merece morar com o Diabo"
 
Riachão em cena do filme "Samba Riachão" - Reprodução - Reprodução
"Ora, eu amo as mulheres!", defende-se o sambista Riachão sobre a letra de "Vá Morar com o Diabo"
Imagem: Reprodução
E foi ali, em um bar de esquina na rua onde mora, que Riachão encontrou outro grande sucesso seu, "Vá Morar Com o Diabo", que estourou na voz da cantora Cássia Eller em 2001. "Eu fui um dos maiores cachaceiros da minha terra. Estava a turma toda reunida, bebendo cachaça, e um deles me puxou para o lado de fora do bar e começou a conversar comigo sobre a gata dele. Ele começou a lamentar e disse que a nega dele não queria fazer nada. Não queria cozinhar, não queria lavar roupa, não queria fazer nada. Aí, no fim do papo, ele disse: 'Quem é que aguenta isso? Vá morar com o Diabo!'. Quando fui embora dali, Deus me mandou uma música", conta.
 
Hoje em dia, quando se recorda da composição que manda a mulher "morar com o sete pele que é imortal", o sambista diz se sentir mal e não gostar mais da música. "Ora, se eu amo as mulheres, se eu quero bem às mulheres, por que eu mandaria elas morarem com o Diabo? Elas não merecem uma coisa dessas! Eu explico sempre, não fui eu que fiz a letra, foi Deus quem me mandou", completa.
 
Sambando na memória
 
Com uma vida permeada de música, Riachão esmorece um tanto ao dizer sobre a perda física da maioria de suas composições. Com apenas sete discos gravados, o sambista lamenta o sumiço de muito do que já compôs nessa vida. "Eu tive umas 500 e poucas músicas, fofinha! Não é brincadeira, não é para qualquer um, não. Eram 500 e poucas músicas na mente e, muitas delas, estavam na rádio quando tudo aconteceu", diz. Riachão refere-se a um incêndio que dizimou seus registros sonoros na Rádio Sociedade da Bahia, onde começou a cantar nos anos 40.
 
"Eu tinha tudo na mente só. Naquele tempo, malandro não gravava disco", cita.
 
No início da trajetória na Rádio, Riachão fez parte de um trio que se apresentava no programa de auditório "Show Pindorama", cantando serestas e músicas sertanejas com os companheiros de palco. Em pouco tempo, começou a se apresentar sozinho com sambas de seu próprio repertório. Todas as músicas compostas por Riachão eram apresentadas na Rádio e, sem registros em papel, foram perdidas no fogo que acometeu a emissora.
 
O disco "Mundão de Ouro", gravado em 2013, surgiu para resgatar um bocado da memória musical de Riachão. O CD leva o nome de uma canção dedicada a Dalva Paim Rodrigues, ou "Dalvinha", segunda mulher do sambista que morreu em um trágico acidente de carro, em que também morreram dois filhos, uma nora e um genro do artista em 2008.
 
Em um trabalho realizado com a direção da cantora Vânia Abreu, Riachão foi a São Paulo e, em diversas reuniões realizadas num estúdio da capital paulista, foi recuperando as músicas, de memória. Nonagenário, Riachão se lembrou, heroicamente, de mais de 70 canções esquecidas e sem gravações. "Mundão de Ouro" foi lançado com 13 inéditas e 2 hits da carreira do baiano.
 
Muita vida, muito samba
"O samba é um tudo de bom para mim", diz Riachão - João Alvarez/BOL - João Alvarez/BOL
"O samba é um tudo de bom para mim", diz Riachão
Imagem: João Alvarez/BOL
 
Com 95 anos, Riachão perdeu a força nas pernas, a constância da memória, mas a força da farra do malandro resiste firme: "Você acha que eu fico parado, menininha? Eu fico o dia inteiro na roça [localizada no quintal de sua casa no Garcia]. As cadeiras [quadril] estão bambeando, mas fico mexendo no mato, plantando as minhas comidinhas", conta.
 

E não para de cantar e repetir as músicas para costurar as frases e moldar as memórias: "É como digo num samba meu... Minha vida é alegria. Para a tristeza não dou bola. Se surgir algum problema, com o samba eu resolvo na hora", entoa o baiano, sambando sentado, com os pés gingando no ritmo de seu repertório "divino".

"O samba, para mim, é Deus. Deus é a música. Então o samba é um tudo de bom para mim", diz Riachão e se abraça, emocionado mais uma vez.

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