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Entidade busca na Justiça ação bilionária de reparação pela escravidão

Punhos levantados em ato pró-democracia - TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Punhos levantados em ato pró-democracia Imagem: TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO
do UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP)

14/08/2022 04h00

Movimentos sociais e partidos políticos ressuscitaram neste ano propostas de reparação financeira à população negra pelo período em que funcionou no Brasil o regime de escravidão. As iniciativas remontam um plano de compensação monetária elaborado no começo dos anos 1990 por um grupo de advogados e levado ao STF (Superior Tribunal Federal), que reconheceu a dívida histórica do Estado brasileiro, mas afastou a ideia por julgar que a União não teria condições de arcar com o pagamento.

Já em análise pelo Congresso Nacional e pela Justiça, as novas ações estipulam a criação de fundos para fomentar políticas públicas para reduzir a desigualdade racial no Brasil ou a combinação das duas possibilidades. Se estivesse ativo, um deles receberia quase R$ 9 bilhões, oriundos de tributos como o Imposto de Renda.

Apresentada em maio deste ano, umas das iniciativas recentes é o projeto de lei elaborado de forma conjunta por parlamentares e lideranças de organizações civis e religiosas, como o Fonsanpotma (Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana) e o movimento de Povos Tradicionais de Matriz Africana do Distrito Federal (DF). Encabeçada pela deputada federal Erika Kokay (PT-DF), a proposta é que o Estado crie e organize políticas públicas para garantir a sobrevivência e a dignidade da população negra no país.

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A deputada Erika Kokay (PT-DF)
Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Na justificativa, Kokay enfatiza que nenhum plano foi pensado para inserir as pessoas até então escravizadas na sociedade desde que a escravidão deixou de existir oficialmente no em 1888. "São grupos sociais que, com muita luta e resistência, preservaram e reinventaram suas tradições no bojo de interações com o ambiente e com outros grupos sociais", escreve.

Entre as propostas, ela propõe a inviolabilidade dos territórios tradicionais de matriz africana, como terreiros, barracões e casas de batuque, salvo mandado judicial. Além disso, obriga o Executivo a fazer campanha nacional de informação e valorização da ancestralidade africana no Brasil. Para financiar essas e outras ações estatais, a parlamentar estipula ainda criação do Fundo Nacional de Reparação do Crime contra a Humanidade, que leva no nome a referência à escravidão.

Aguardando indicação de relatoria na CDHM (Comissão de Direitos Humanos e Minorias), a proposta não indica a origem dos recursos do fundo.

A outra ação que corre na Justiça faz isso. Elaborado pela Fundação Educafro, entidade que promove a inclusão da população negra e pobre em universidades públicas, o processo foi apresentado na 5ª Vara Cível Federal de São Paulo em 13 de maio deste ano, que marca o aniversário da assinatura da Lei Áurea.

Assinada pelo advogado Irapuã Santana, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, junto das advogadas Caroline Ramos e Ana Paula Gatti, a ação está na mesa do juiz juiz federal é Paulo Alberto Sarno, que decidirá se a encaminha para análise da AGU (Advocacia Geral da União) por citar a União.

A ação exige que o Estado brasileiro peça desculpas formais pela escravidão e seja condenado pela omissão em relação ao racismo estrutural que, argumentam os advogados, impossibilitou a inclusão da população negra no mercado de trabalho.

É certo afirmar que o Estado brasileiro adotou um conjunto de práticas ilegais que resultaram na manifesta desigualdade socioeconômica e racial da população negra (...) enquanto os povos não africanos eram convidados a vir para o Brasil, garantindo-lhes passagem, trabalho e casa, os quase seis milhões de negros foram proibidos pelo Estado brasileiro de ter um lugar para morar e para estudar (...) Enquanto os negros procuravam por trabalho, eram preteridos diante da alta oferta de imigrantes europeus e de seus filhos em terras brasileiras."
Irapuã Santana, Caroline Ramos e Ana Paula Gatti, advogados

Irapuã - UOL/Carine Wallauer - UOL/Carine Wallauer
Formado em Direito na UERJ por meio do sistema de cotas, Irapuã Santana atuou como assessor no STF e TSE.
Imagem: UOL/Carine Wallauer

Além disso, os advogados pedem a criação do Fundo Especial e Permanente de Combate ao Racismo e Emancipação da População Negra, que financiaria políticas que contribuísse com uma sociedade antirracista.

A ação pede que a União destine ao fundo 1% da arrecadação dos impostos sobre renda (IR) e sobre produtos industrializados (IPI) e 3% das contribuições para os programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). Se já estivesse valendo, o montante para o ano de 2021 chegaria a R$ 8,75 bilhões, segundo dados da Receita Federal.

Para a advogada e vice-presidente da Comissão da Verdade e Memória da Escravidão Negra da OAB-SP, Lenny Blue de Oliveira, 69, é possível que estas ações obtenham sucesso, mas é necessário efetivar no orçamento diretrizes, metas e objetivos que atendam a população negra com programas supervisionados.

A pesquisadora Ana Carolina de Paula Silva, ex-vice-presidente da Comissão de Monitoramento e Avaliação da Lei Municipal de Cotas em São Paulo, discorda. Para ela, os movimentos em curso no Brasil não têm chances de prosperar devido ao cenário político, que é de retrocesso e desmonte de políticas públicas. "[No atual momento] se tenta reler a história para apagar a dívida histórica do país com essa população", diz.

Primeiro pedido de reparação

Em 1993, ainda na esteira da redemocratização, foi diferente. Na época, 12 estudantes universitários elaboraram uma das primeiras iniciativas de reparação. Ecoando o mote da campanha pelo voto direto, o grupo, chamado Movimento Pelas Reparações, tinha "Reparações Já" como slogan.

Entre os integrantes estavam Fernanda Lopes, hoje uma das diretoras do Fundo Baobá para Equidade Racial, e Luiz Carlos dos Santos, um dos fundadores do Núcleo da Consciência Negra da USP, autor dos livros "Luiz Gama" (Selo Negro) e o "Negro em Versos" (Org.) conselheiro do Museu Afro Brasil, em São Paulo.

Segundo calcularam os estudantes, os 3,6 milhões de africanos trazidos à força ao Brasil geraram uma força de trabalho escravizada de 30,7 milhões de trabalhadores. A ação do movimento na Justiça buscava obrigar o Estado brasileiro a pagar uma indenização em dinheiro aos descendentes destas pessoas.

No cálculo da compensação, o grupo considerou ganhos não pagos durante uma vida útil média de 20 anos a cada pessoa escravizada. Chegou a uma soma de US$ 6,14 trilhões. Como naquele ano a população negra era estimada em 40% dos brasileiros, a proposta era destinar a cada indivíduo US$ 102 mil. Em valores convertidos e corrigidos pela inflação no período, cada brasileiro contemplado receberia hoje cerca de R$ 965.110,38, calcula Luiz Eduardo Gaio, professor de Administração da Unicamp.

Na época, o STF chegou a reconhecer a relevância do processo, alguns debates foram feitos. No entanto, os juízes da corte chegaram à conclusão de que o país não daria conta financeiramente de arcar com o volume das indenizações. Segundo o órgão, a reparação deveria, então, ser realizada por meio de políticas públicas.

Anos depois, com pressões intensas dos movimentos negros, algumas legislações foram implantadas. Uma delas é a Lei de Cotas, que reserva 50% das vagas em universidades e institutos federais para alunos de escolas públicas. Parte deste percentual é destinado a estudantes negras.

A Lei de Cotas foi responsável por mudar o perfil dos alunos que passaram a estudar nestes locais. Em 2018, por exemplo, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas instituições de ensino superior públicas foi de 50,3%, ultrapassando, pela primeira vez, o de alunos brancos.

Para a pesquisadora Ana Carolina, as políticas de transferência de renda que tentam mitigar as desigualdades sociais beneficiam, ainda que indiretamente, a população negra. Ela afirma, porém, que "isso não equivale a uma reparação material pelos prejuízos econômicos transmitidos de geração em geração a essa parcela da população".

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