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'Sobrevivendo no inferno', diz mãe que perdeu filho na maior chacina de SP

"Meu filho serviu à pátria, mas o Brasil não serviu a ele", diz Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo - Fernando Moraes/UOL
'Meu filho serviu à pátria, mas o Brasil não serviu a ele', diz Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL
do UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de Osasco (SP)

12/08/2022 04h01

Zilda Maria de Paula, 68, diz estar morta. A vida, segundo ela, acabou na quinta-feira 13 de agosto de 2015, quando Fernando Luiz de Paula, 34, seu único filho, foi assassinado em Osasco. Fernando e outras 17 pessoas foram mortos por três policiais militares e um guarda civil entre Osasco e Barueri. Foi a maior chacina do estado de São Paulo.

"Era meu companheiro para tudo", diz, sobre o filho. Zilda olha nos olhos enquanto conversa, mas não perde de vista o celular: articuladora do movimento 13 de Agosto, que reúne as mães das vítimas de Osasco e Barueri, ela está organizando um ato marcado para a tarde desta sexta-feira em frente à estação Osasco da CPTM e um debate sobre violência de Estado no sábado (13), para lembrar os sete anos da tragédia. "É café e almoço. Querem bandeira e camiseta também", diz.

Após a perda de Fernando, conhecido pelo apelido Abuse, Zilda conta que está "sobrevivendo no inferno", referência a um álbum dos Racionais MC's. "Eu tô na rua de bombeta e moletom", emenda ela, citando a canção "Capítulo 4, Versículo 3", trecho que lembra um pouco o estilo de Abuse nas ruas de Osasco.

Torcedor do São Paulo e apaixonado por basquete, Fernando vivia com a mãe, ajudava-a nos afazeres de casa e adorava cuidar dos cachorros. "Era assim que a gente vivia. Ficou um vazio." A casa, na periferia da zona norte de Osasco, ficou imensa.

Aos 18 anos, ele passou no alistamento militar e serviu no Exército por uns meses, mas depois foi dispensado. Entregou currículos, mas não conseguiu um emprego fixo e partiu para bicos de pintor, ajudante de pedreiro e o que desse para fazer. "Ele serviu à pátria, mas o Brasil não serviu a ele."

Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Lute como uma mãe

Movimentos de mães se fortaleceram desde a ditadura militar (1964-1985), diz o sociólogo Acácio Augusto, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).

"São mães, mulheres que são uma chave importante de articulação das necessidades mais imediatas de um bairro, de uma favela", assinala. São elas, acrescenta ele, as responsáveis por muitas vezes expor a violência contra os mais pobres e os pretos.

Augusto é um dos acadêmicos mais próximos de Zilda e dos demais familiares das vítimas. Juntos, buscam zelar pela memória do caso.

Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

"Zilda arrancou forças não sei de onde para lidar com a situação - e com as mulheres e as mães, muito diferentes entre si, como Maria, migrante nordestina, que também trabalha em casa de família; Antônia e Cida, que dão aulas de matemática; Rosa, que é bem religiosa, pentecostal evangélica", detalha.

Zilda passou a recebê-las em sua casa para, com auxílio da ONG Rio de Paz, conversar sobre o processo, reunir provas sobre o caso, articular manifestações e preservar a memória das vítimas. Tornou-se um tipo de porta-voz das demandas delas, embora não se considere uma personalidade para discutir direitos humanos. "Não me vejo como uma ativista, mas dizem que eu sou", diz.

Ela também fez amizade com Débora Silva, do movimento Mães de Maio, além de mulheres do Geledés - Instituto da Mulher Negra. Hoje, diz compreender melhor outras violências, como as que atingem a população LGBTQIA+ e a própria desigualdade social.

Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Vamos, Fernando'

Certa vez, lembra ela, foi a uma escola particular no Butantã, zona oeste de São Paulo, onde a maioria dos alunos eram brancos. Se eles fossem a um shopping, pensou, não seria nada demais; já seria diferente para três meninos negros, que possivelmente seriam seguidos lá dentro.

"Se vou à loja, se namoro na vitrine, já entro e pergunto", diz. Já o filho preferia parar e ficar olhando, no seu tempo. "Meu filho não tinha malícia. Dizia: 'Não devo nada, não estou fazendo nada'. Infelizmente, não é assim a vida para quem tem a pele escura no Brasil", lamenta ela, que precisava vez e outra apressá-lo: "Vamos, Fernando".

No dia 13 de agosto de 2015, Fernando pintou de amarelo uma das paredes da sala. Conferiu se estava do jeito que a mãe queria, limpou tudo, tomou banho e foi cortar o cabelo com os R$ 20 que ela lhe dera. Zilda ia assistir novela, a TV pifou, e ela saiu no quintal para tentar pedir para o filho voltar e conferir o que aconteceu. Ele já tinha sumido na viela.

Zilda voltou e mexeu mais um pouco na TV. Deu certo e ela se acomodou no sofá. Depois de uns minutos, perto das 20h, ouviu um barulho. Um garoto da vizinhança foi até lá para contar que Fernando tinha sido baleado.

Casa de Zilda Maria, mãe de Fernando, uma das vítimas da maior chacina do estado de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

"Na hora, pensei: 'Mas cansei de dizer para aquele menino não entrar em briga'", lembra, sentada no mesmo sofá de 2015, com cinco cachorros dormindo ao seu redor. "Ele morreu?", perguntou, mas o garoto não respondeu. Ela saiu então às pressas, desceu a viela, chegou correndo no Bar do Juvenal, viu viaturas policiais e, entre as aglomerações, comentários sobre a quantidade de mortos de uma vez só ali.

Enquanto tentava lidar com o caos, viu Fernando, baleado, sendo resgatado e levado ao hospital. Ele não resistiu.

Zilda lembra que preferiu dormir sozinha naquela noite. "Foi um vazio. Bateu um vento forte. Uma dor que nem conseguia chorar", cita.

A chacina, segundo a promotoria, se deu pois agentes se uniram para vingar os assassinatos de um PM de Osasco e um guarda civil de Barueri. No Bar do Juvenal, Fernando e outras sete pessoas foram assassinadas. Ao todo, são consideradas 29 mortes resultantes da ação, de acordo com a contagem dos pesquisadores da Unifesp a partir de inquéritos que culminaram em processo penal.

Os ex-policiais militares Fabrício Eleutério e Thiago Henklain foram condenados em 2017; o guarda civil Sérgio Manhanhã e o ex-PM Victor Santos foram absolvidos em 2021. "O que sinto não sei se é ódio, raiva ou revolta."

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