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OPINIÃO

Mudar regra de descarte na indústria química beneficiaria meio ambiente

do UOL

Em coautoria com Luciana Rodrigues Oriqui, doutora em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas e sócia-diretora da Circular Químicos.

24/06/2021 04h00

O objetivo final da regulação econômica deve ser elevar o nível de bem-estar na sociedade, corrigindo "falhas de mercado". No caso particular da indústria química, há ao menos duas questões que poderiam nos remeter à discussão regulatória. A primeira delas é a que envolve a correção de uma eventual assimetria informacional entre o fabricante dos produtos e seus demandantes.

Em tese, o fabricante conhece as propriedades de seu produto (qualidade, segurança, etc.) melhor do que seu usuário. Por sua vez, no caso específico do demandante industrial, este conhece seu processo melhor do que o fabricante. Nesse sentido, há uma dupla assimetria informacional nesta relação entre as partes, que pode ser corrigida por meio da cooperação entre elas.

Já a segunda questão envolve a necessidade de se evitar um tipo muito comum de externalidade negativa: a poluição. É de conhecimento público que, se não tomados os devidos cuidados, tanto no processo produtivo como no descarte de materiais, a indústria química tem um potencial enorme de gerar fortes danos ao meio ambiente. Exemplos de problemas deste tipo não faltam pelo mundo afora.

Apesar de o senso comum sugerir que a regulação normalmente deve ser de competência direta do Estado, nada impede que algumas regras sejam criadas no âmbito do próprio setor, complementando e até mesmo evitando a necessidade de uso da mão pesada de agentes públicos. E é sobre este aspecto que entendemos que a indústria química tem muito ainda a caminhar no Brasil.

A questão central envolve a forma como hoje é tratado o prazo-limite de uso dos produtos químicos nas relações comerciais entre empresas no Brasil e seu efeito sobre a sociedade. Em outros países, a extensão do prazo de uso de produtos químicos é, em geral, permitida. Isso ocorre por meio de dois processos de verificação.

O primeiro é a revalidação, quando são atribuídos prazos-limite de uso, que podem ser estendidos pelo fabricante do produto químico. Já o segundo é o reteste, para casos específicos de produtos para os quais cabe à indústria usuária, que conhece melhor os riscos associados à utilização do produto em seu processo, a verificação da manutenção das propriedades do produto a cada uso que queira dar (observado o prazo-limite estabelecido para início do reteste).

Obviamente existe toda uma questão técnica para a aferição de quais produtos devem se encaixar em cada caso, mas o resultado prático desta decisão é um impactante ganho ambiental, econômico e social, na medida em que se evite o descarte indevido de produtos, que mantêm suas propriedades intrínsecas.

Esse processo privado de revalidação e reteste ajuda a minimizar de uma só vez os dois problemas descritos anteriormente: corrige a informação assimétrica entre o vendedor do produto químico e seu usuário industrial, dando garantia à continuidade do uso do material; e reduz a externalidade negativa associada ao descarte desnecessário de produtos no meio ambiente.

No Brasil, infelizmente, a falta de regulamentação específica para o setor químico e petroquímico fez com que muitas multinacionais aqui instaladas se adequassem à essa situação vigente. Assim, apesar de possuírem procedimentos técnicos (de revalidação e reteste) para ampliação de prazo de uso de produtos químicos em outros mercados, acabam não os aplicando por aqui.

Em realidade, isso tem ocorrido muito pela discussão vigente sobre consumidores industriais serem ou não considerados consumidores finais e, portanto, se devem submeter-se à Lei do Código do Consumidor (Lei 8.078/90), que estabelece a obrigatoriedade de identificação clara do prazo de validade e a impossibilidade de sua extensão.

Fato é que hoje a jurisprudência neste setor tem caminhado para o entendimento de que consumidores industriais diferem de consumidores finais e, portanto, a eles não se aplicaria o quanto exigido na Lei 8.078/90. Nesse sentido, caberia apenas se estabelecer um ordenamento normativo que adote e ampare práticas internacionais voltadas à prevenção do descarte de tais resíduos.

Vale lembrar que a questão de sustentabilidade é discutida e monitorada globalmente, havendo, inclusive, metas específicas estabelecidas para minimização de impactos ambientais oriundos de resíduos industriais químicos (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030), definidas no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU).

Note-se que a definição e consolidação de boas práticas pode ainda evitar sobrecarregar órgãos fiscalizadores e ambientais, responsáveis pela contenção de impactos no meio ambiente. Ademais, sob o ponto de vista da indústria que consome produtos químicos, a perda de material via descarte prematuro implica ainda a elevação de seus custos, que acaba sendo em alguma medida repassado ao consumidor por meio de preços mais elevados.

E é nessa linha que associações, entidades ambientais, empresas e pesquisadores têm se reunido para discussões técnicas sobre o tema e já há material sendo preparado para a orientação de atribuição de validade e estudos de estabilidade para retestes e revalidações de produtos químicos. Porém, seria essencial a participação do Estado, por meio de normas e políticas públicas que respaldem esse material, trazendo, inclusive, segurança jurídica ao setor.

Em última instância, o que se percebe hoje no país é que a necessidade de descarte precoce de produtos químicos só tende a piorar o efeito sobre o meio ambiente ou, na melhor das hipóteses, encarecer o processo de gerenciamento de resíduos para toda a sociedade. E, por óbvio, parte desses custos adicionais acabam sendo suportados também pelo consumidor final.

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