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"Espero que meus filmes possibilitem um melhor entendimento de como o Brasil chegou até aqui", diz documentarista Maria Augusta Ramos

12/06/2021 16h11

A cineasta brasileira Maria Augusta Ramos é a grande homenageada desta edição do festival Cinélatino, em Toulouse, no sudoeste da França. A obra da documentarista, célebre por retratar o sistema judiciário do Brasil, ganha uma retrospectiva no evento. Ela conversou com a RFI sobre a homenagem e o movimento de resistência do cinema brasileiro em um momento de desmonte da cultura pelo governo de Jair Bolsonaro.

Daniella Franco, enviada especial da RFI a Toulouse

"É importante refletir sobre o que estamos vivendo no Brasil no momento atual e de como os eventos históricos - como o impeachment da ex-presidente Dilma - possibilitou a eleição de Bolsonaro e infelizmente tudo o que estamos vivendo agora: esse autoritarismo, conservadorismo em relação à comunidade LGBT, aos indígenas, contra os pobres, contra os negros, o aumento das agressões policiais, os ataques à liberdade de imprensa e, claro, o grande genocídio que está acontecendo devido aos atos e falas do presidente Bolsonaro em relação à pandemia", enumera.

A obra de Maria Augusta retrata o percurso político e social do Brasil nas últimas décadas, colocando em evidência as causas e consequências da crise que o país atravessa há alguns anos. Na trilogia "Juízo" (2003), "Justiça" (2004) e "Morro dos Prazeres" (2013), ela apresenta as contradições do sistema judiciário e da polícia no Brasil. Já "Futuro Junho" (2015) foca nas desigualdades sociais acompanhando o cotidiano de quatro cidadãos em São Paulo.

"O Processo" (2018) é um grande marco internacional na carreira da documentarista. O filme revelou os bastidores do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016 - uma obra aclamada e premiada na Europa. Neste ano, Maria Augusta traz ao Cinélatino seu mais novo documentário, "Não toque em meu companheiro".

Embora os trabalhos da documentarista abordem questões específicas e complexas da sociedade brasileira, o público europeu consegue facilmente se identificar com as temáticas. Segundo ela, isso se deve à universalidade de sua obra, além da estética de seu trabalho, que, como ela mesma explica, "promove uma maior intimidade com os personagens de seus filmes".

"As relações humanas e de poder que são retratadas, a questão da violência, do sistema capitalista e como ele influencia e define os nossos comportamentos, são fenômenos que ocorrem no mundo todo, como a fragilização e a destruição dos direitos trabalhistas que estamos vendo agora devido a essa mentalidade neoliberal que vem se espalhando há um bom tempo. Por isso que os europeus se identificam tanto nesses personagens brasileiros", explica.

O "lado" do PT

A imprensa europeia destaca a facilidade que Maria Augusta tem para retratar setores de difícil acesso, como fez em "Morro dos Prazeres", em que a documenta a atuação de uma das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e o cotidiano dos moradores do local, entre eles, o de um menor infrator. Em "O Processo", a cineasta brasileira filma reuniões da defesa da ex-presidente Dilma Rousseff, o que levou o site francês Mediapart, que não poupa elogios ao trabalho, a afirmar que Maria Augusta "escolheu o lado do PT".

A documentarista alega que tem um comprometimento com a ética e com a verdade, mas reconhece que "não é possível ser isento em um trabalho artístico". "Certamente o documentário não é imparcial. Existe um sujeito artístico, que sou eu, com meu passado, com a minha bagagem, não só com o que eu vivi, mas com a minha experiência também cinematográfica. No filme, fica muito claro que ele não é a realidade, mas uma representação subjetiva da realidade", argumenta.

Maria Augusta recusa ter tomado partido da defesa do PT, mas afirma que em "O Processo" tentou privilegiar uma visão contrária ao impeachment de Dilma Rousseff. "Hoje sabemos que foi um golpe. Mas, na época, na grande mídia, predominava a narrativa pró-impeachment e existia uma grande distorção das razões pelas quais o processo ocorria. O público brasileiro e, certamente estrangeiro, não tinha a menor ideia dos pseudocrimes de responsabilidade que Dilma estava sendo acusada, que eram de simples entendimento mas que eram mostrados como complexos para que ninguém compreendesse", completa.

A cineasta explica ainda que a cúpula do PT e a defesa de Dilma também lhe davam facilmente acesso para trabalhar, o que não ocorreu no campo da acusação e da direita brasileira. "Se eles tivessem me dado possibilidade, eu certamente teria filmado. Ainda assim, o filme apresenta sim os argumentos a favor do impeachment na fala dos grandes acusadores, como Janaina Paschoal, como o senador Cássio Cunha Lima e outros que dão voz à narrativa a favor do golpe", reitera.

"Não toque em meu companheiro"

Em Toulouse, Maria Augusta apresenta seu novo trabalho, "Não toque em meu companheiro", que foca na greve e na demissão injusta de 110 funcionários da Caixa Econômica Federal, nos anos 1990. A documentarista traça um claro paralelo entre o desrespeito dos direitos trabalhistas durante o governo de Fernando Collor e o início da presidência de Jair Bolsonaro, sobretudo com a aprovação de uma controversa reforma da Previdência.

A cineasta diz esperar que o filme contribua para uma reflexão sobre o que ocorre atualmente no Brasil. "A popularidade de Bolsonaro está em queda. A insatisfação da população com o governo dele é enorme e há um arrependimento da parte de muitas pessoas que votaram nele. Eu acredito que se não houvesse a pandemia, as pessoas estariam em peso na rua protestando", afirma.

Maria Augusta define como "terrível" o desmonte do setor da cultura pelo governo brasileiro. "É um momento absolutamente tenebroso de silenciamento de artistas e cineastas, da arte e da cultura. O autoritarismo e o fascismo se alastram nesse momento no Brasil, promovido por todo o governo, mas principalmente pelo presidente Bolsonaro e seus filhos. São ataques a qualquer intelectual, artista, político, jornalista, que critique ou pense diferente do governo", lamenta.

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