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Chile vai às urnas para escrever um futuro sem a sombra de Pinochet

14/05/2021 06h48

As eleições em dois dias, sábado e domingo, serão as maiores desde o retorno da democracia em 1990. Pela primeira vez em 200 anos de independência, os chilenos terão uma Constituição que nascerá do voto popular. A atual de 1980, herança do ex-ditador Augusto Pinochet, é considerada a gênese da desigualdade social, o maior flagelo da sociedade chilena

Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires

Depois de 40 anos de uma Constituição imposta pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), o Chile terá um novo contrato social entre o Estado e a população, com o objetivo combater a desigualdade social que três décadas de democracia com crescimento econômico não conseguiram reduzir.

Os chilenos entendem que a estrutura desse problema é a Constituição liberal que define Educação, Saúde, Previdência, Moradia e até o acesso à água como serviços privados. No Chile atual, quase tudo é privado e o gasto social do Estado é baixo.

"Os chilenos veem a nova Constituição como uma mudança concreta e de curto prazo para combater o pior da sociedade chilena: a desigualdade. O Chile não tem problemas de crescimento econômico nem de qualidade democrática, mas de desigualdade", explica à RFI o cientista político Carlos Meléndez, da Universidade Diego Portales, do Chile.

"Os chilenos canalizam através da nova Constituição o reflexo das suas frustrações, de tudo aquilo que não funciona no Chile, começando pela desigualdade social", acrescenta, em entrevista à RFI, o sociólogo e analista político, Patricio Navia, também da Universidade de Diego Portales, no Chile, e da New York University, nos Estados Unidos.

Foi preciso que, a partir de outubro de 2019, uma avalanche de violentas manifestações quase diárias arrancassem à força um processo constituinte, para dar ao país a sua primeira Constituição através do voto popular. As anteriores de 1833, de 1925 e a atual de 1980 foram impostas.

Quatro eleições históricas

As eleições deste fim-de-semana têm características únicas na região e até no mundo. Pela primeira vez na história, um país vai redigir uma Constituição com igualdade de gênero. Dos 155 integrantes, metade serão homens; metade, mulheres.

O Chile será o único país no mundo a redigir uma Constituição em plena pandemia. Um bom instrumento para isso é o alto nível de vacinados no país. Dos 19 milhões de habitantes, quase a metade tem uma dose e 40% as duas.

Algumas regiões do país continuam em lockdown. A maior de todas, a região metropolitana de Santiago, saiu do confinamento nesta quinta-feira (13). A votação em dois dias, sábado e domingo, visam evitar a concentração de eleitores no contexto da pandemia.

Pela primeira vez numa Constituição chilena, serão reconhecidos os 12,8% de índios da população. Dos 155 constituintes, 17 lugares estão reservados para os representantes indígenas.

Além de constituintes, os chilenos vão eleger vereadores, prefeitos e, pela primeira vez, governadores num processo de descentralização do poder da capital, Santiago, às demais 15 regiões. Até agora, os governadores eram designados pelo presidente.

Essas serão, portanto, as maiores eleições no país desde o retorno da democracia.

Tendência à esquerda, mas direita pode resistir

Não há pesquisas de opinião que indiquem um provável resultado. Uma maioria de candidatos de esquerda vai dividida enquanto uma minoria de candidatos de direita vai unida. Essa diferença pode favorecer a direita a obter mais de 1/3 dos votos e, assim, ter capacidade de veto e poder de negociação: as iniciativas requerem 2/3 dos votos para serem aprovadas.

"Os partidos de esquerda vão todos separados, enquanto a direita irá toda junta numa única lista. Isso vai beneficiar um pouco mais a direita que aspira obter mais de 1/3", acredita Patricio Navia.

"Quanto aos eleitores, o país está inclinado à esquerda, mas não existe uma oferta convincente para esse eleitorado. O voto de esquerda deve-se pulverizar. A direita perderá, mas não será por nocaute. Terá mais capacidade de resistência do que se espera", aposta Meléndez.

Protestos vão continuar

Apesar de o processo constituinte ter sido o objetivo das maciças manifestações, os protestos não devem terminar. Pelo contrário, podem mesmo aumentar cada vez que os constituintes discutirem sobre direitos.

"As manifestações são mais fortes do que a própria Constituinte. As manifestações vão pressionar por direitos", prevê Carlos Meléndez.

"Os protestos devem aumentar porque, se a Assembleia Constituinte não fizer o que as ruas pedem, os manifestantes vão rodear os constituintes até conseguirem o que querem. A pressão social vai aumentar porque as expectativas são muito altas", calcula Patricio Navia.

Um modelo sem lideranças

O processo chileno tem origem nas grandes manifestações populares, sem que houvesse líderes políticos na condução do processo. O presidente chileno, Sebastián Piñera, era contra.

A lógica é bem diferente das Constituições da Venezuela, da Bolívia e do Equador que, nos últimos anos, nasceram a partir do projeto de poder de um líder que pretendia a reeleição, se possível por tempo indeterminado. O processo chileno emerge das ruas contra o poder.

"O processo chileno é órfão de um projeto político. Os processos constituintes na América do Sul tiveram uma liderança populista de esquerda, como Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), ou de direita como Alberto Fujimori (Peru)", compara Carlos Meléndez.

"Nos demais países, chegou um líder ao poder e impulsionou uma nova Constituição. No caso do Chile, a nova Constituição não tem um líder. Nem mesmo sabemos quem será o presidente, a ser eleito em novembro, que estará no poder durante os trabalhos constituintes", indica Patricio Navia.

O espelho latino-americano

Um dos riscos do processo é que a Constituição garanta todos os direitos sociais, mas que depois não haja recursos financeiros para financiar tudo. Os países vizinhos estão repletos de exemplos de direitos constitucionais que não são cumpridos.

"O risco é que os membros da Constituinte decidam que o Estado poderá pagar todos os direitos sociais porque tem os recursos. A percepção generalizada dos chilenos é que o Estado tem dinheiro, mas que distribui mal. O lema das manifestações diz que 'o Chile acordou'. O problema é que, ao acordar, pode perceber que está na América Latina", observa Patricio Navia.

"Na América Latina, os recursos acabam porque o gasto aumenta mais rápido do que a receita. Os países terminam com problemas de dívida. Esse é o risco do Chile: os membros constituintes vão colocar todas as promessas na Constituição. Vão assinar os cheques, mas serão os futuros governantes os que terão de pagar a conta", adverte Navia.

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