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Na negra Salvador, indígenas lutam para estudar e criar comunidades urbanas

Retrato da pataxó Rutian do Rosário Santos no centro histórico de Salvador - Raul Spinassé
Retrato da pataxó Rutian do Rosário Santos no centro histórico de Salvador Imagem: Raul Spinassé
do UOL

Alexandre Lyrio

Do Mongabay

11/05/2021 04h00Atualizada em 11/05/2021 10h54

Estudante de letras e artista visual, Sandy Eduarda, 27, encontrou nos estudos uma forma de resistência. Yacunã, seu nome indígena, é da etnia tuxá, com origem no município de Rodelas, norte da Bahia.

A própria comunidade a incentivou a cursar o ensino superior. "Eu precisava sair para me instrumentalizar com o conhecimento do não indígena e poder ajudar o meu povo na luta pelo território", explica.

O último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que, em 2010, 7.552 indígenas habitavam os 20 subdistritos de Salvador. Parte, como Yacunã, ainda fortemente ligada às aldeias onde brotaram suas raízes. Outros tantos perderam laços com sua gente.

Muitos indígenas —conectados às suas origens ou não— residem no bairro da Federação. Além de estarem próximos à universidade, foram atraídos uns pelos outros.

Não há levantamento que demonstre o aumento da concentração de indígenas próximo à universidade, mas é impossível negar que o campus atrai estudantes do sistema de cotas.

Atualmente, segundo dados da própria UFBA (Universidade Federal da Bahia), entre os quase 28 mil estudantes, 205 são indígenas. O desempenho acadêmico desses estudantes é igual ao dos demais. "As cotas cumpriram seu objetivo de democratizar o acesso. Os alunos indígenas têm um bom desempenho", afirma o pró-reitor de graduação, Penildon Pena.

Os indígenas da área metropolitana de Salvador buscam maneiras de marcar território em meio à capital, onde, segundo o último Censo do IBGE, oito em cada dez pessoas são negras. Para tanto, além dos traços da indumentária, usam as pinturas corporais.

As dificuldades para que os indígenas se adaptem ao meio urbano são tema da pesquisadora Maria Hilda Paraíso, cientista social e antropóloga da UFBA, para quem uma das formas de tornar essa empreitada menos complicada é o convívio com outros indígenas.

Difícil enfrentar a mudança de hábitos e as formas de relações sociais hierarquizadas. Quando convivem com outros índios isso se torna, digamos, menos doloroso.
Maria Hilda Paraíso, cientista social e antropóloga

Yacunã vivencia dentro da UFBA —e também fora dela— a mesma luta que seu povo enfrenta há mais de 30 anos, desde que a construção de uma barragem expulsou os tuxás da aldeia de origem.

Com o fim da antiga Rodelas, alagada, a aldeia passou a estar em uma área não mais demarcada. Hoje, em Salvador, Yacunã também se sente um peixe fora d'água, como um matrinxã retirado do rio São Francisco, que aliás banha a sua Rodelas.

No Alto das Pombas, comunidade que fica no mesmo bairro da Federação, Yacunã tem dois amores. Lésbica e ativista do movimento LGBTQIA+, um deles é a namorada, Itayná Ranny; o outro é a luta pela aceitação da presença indígena na capital da Bahia.

"É um imaginário muito estereotipado. Falam: 'Como assim você é indígena? Você está na universidade, você usa calça jeans, você usa tênis'."

Por causa de sua orientação sexual, outra briga foi conquistar espaço na própria aldeia. "Eu bati o pé e falei: 'É isso mesmo'. Não abri mão da minha cultura para vivenciar minha sexualidade, sabe?"

Integrante do Coletivo Tibira, primeiro de indígenas LGBTQIA+ do Brasil, concluiu que, na verdade, a LGBTfobia não faz parte da tradição indígena. "Não é um discurso nosso e nem da nossa cultura. É algo que foi imposto pelo branco", diz.

Elevador Lacerda, no centro histórico em Salvador - Raul Spinassé - Raul Spinassé
Elevador Lacerda, no centro histórico em Salvador
Imagem: Raul Spinassé

Rutian Pataxó: respeito além do horizonte

Depois de séculos de exploração, violência, doenças e escravização, os indígenas seguem lutando por território onde hoje existe uma metrópole com 3 milhões de habitantes. O objetivo de muitos indígenas que vivem em Salvador é buscar formação especializada.

Poucos são tão obstinados nessa missão quanto Rutian do Rosário Santos, 30. Integrante da segunda turma de cotas indígenas da UFBA, moradora de Salvador desde 2008, Rutian Pataxó é formada em economia e hoje estuda direito na mesma universidade.

Para Rutian, que veio de Coroa Vermelha, indígenas precisam estudar e se aprimorar.

Apesar de estar em uma cidade negra, a universidade ainda é de brancos, homens e héteros. Quando cheguei, existia uma barreira invisível entre cotistas e não cotistas.
Rutian Pataxó, estudante

Ela explica que a definição do que seriam indígenas em áreas urbanas é controversa até mesmo dentro do movimento indígena. São os que moram nas cidades e não têm ligação com as aldeias? São os que mantêm laços com as origens e foram morar na cidade? Ou simplesmente os que vivem nas chamadas aldeias urbanas, próximas às metrópoles?

Fusão com africanidade

A luta pela preservação da cultura une a todos e, nisso, a africanidade da primeira capital do Brasil ajuda. Rutian e outros indígenas bebem na fonte da negritude para manter hábitos.

Na região da Cidade Baixa, que margeia a Baía de Todos os Santos, descobriram a Feira de São Joaquim, onde encontram utensílios e ingredientes usados nas religiões de matriz africana, por exemplo. Não encontram a folha da patioba, mas descobriram a da bananeira.

"A gente viu que eles têm uns utensílios de barro e compramos para fazer nossas comidas", conta.

Apesar de marcada pelas tensões do processo de colonização e escravização, sempre existiu uma troca dinâmica entre negros e indígenas. Com o tempo, as duas culturas exploradas se fundiram, em alguns casos até religiosamente.

"Isso se expressa de forma marcante no ambiente dos candomblés de caboclo", exemplifica Fabrício Lyrio, especialista em história dos povos indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Na busca por cada vez mais espaço, os indígenas tentam se manter coesos. Por isso, tudo é feito em grupo. "O que mais impressiona na cidade é o egoísmo, a individualidade. O espírito coletivo é uma coisa que a gente aprende dentro de casa. Sempre estamos juntos", compara Rutian.

Apesar disso, ela não sabe se um dia vai retornar para Coroa Vermelha. "Acho que você precisa colaborar com a luta de onde você estiver."

Leia a reportagem completa no site da Mongabay.

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