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Enquanto divulga tratamento precoce sem base, Sorocaba vê mortes dobrarem

Post feito pela prefeitura de Sorocaba defendendo o tratamento precoce - Arte/UOL
Post feito pela prefeitura de Sorocaba defendendo o tratamento precoce Imagem: Arte/UOL
do UOL

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

15/04/2021 04h00

Enquanto a prefeitura de Sorocaba, no interior de São Paulo, divulga uma suposta eficácia do tratamento precoce no combate à covid-19, a cidade viu o número de mortes por complicações da infecção pelo novo coronavírus dobrar em menos de três meses.

Em 1º de janeiro de 2021, Sorocaba havia registrado 566 mortes causadas pela covid-19. Anteontem, o índice saltou para 1.377, um aumento de 143%. O protocolo com tratamento precoce foi adotado pela prefeitura, segundo comunicou o órgão, em 19 de março.

A média de mortes em decorrência da doença não para de crescer desde fevereiro. Se antes era de 4 óbitos por dia em média, em abril já são 20. Os óbitos de abril (263) já correspondem a 74% dos óbitos de março (357). O mesmo cenário acontece em relação aos novos casos, que atualmente (6.046) correspondem a 75% de todo o mês de março (8.043).

Os dados foram levantados a pedido do UOL pela plataforma Infotracker, da USP (Universidade de São Paulo) e da Unesp (Universidade Estadual Paulista). O instituto utiliza os números divulgados pelo próprio governo estadual de São Paulo.

Ranking de cidades do estado de São Paulo com aumento de mortes por covid-19 - Divulgação/Infotracker - Divulgação/Infotracker
Ranking de cidades do estado de São Paulo com aumento de mortes por covid-19
Imagem: Divulgação/Infotracker

A prefeitura de Sorocaba, ontem, publicou os resultados de um "estudo preliminar" que apontaria para a eficácia de um tratamento precoce contra a infecção pelo novo coronavírus. Não há estudos que comprovem essa alegação.

Primeiro, a prefeitura de Sorocaba, comandada por Rodrigo Manga (Republicanos), publicou um "estudo preliminar" que apontava para "eficácia de 99%" do tratamento precoce contra a covid-19. A publicação recebeu uma enxurrada de críticas dos usuários na internet e foi apagada.

Minutos depois, a prefeitura repostou o mesmo estudo, mas em tom diferente, dizendo apenas que o tratamento se mostrou eficaz na cidade. Segundo o município, 123 pacientes com sintomas da doença que usaram o tratamento precoce, "122 apresentam-se curados em domicílio".

Falso

O tratamento precoce de Sorocaba consiste em receitar medicamentos comprovadamente ineficazes contra o vírus e com graves efeitos colaterais, como o antibiótico azitromicina e o remédio para piolho ivermectina. Conforme já apontaram diversos cientistas, não há um tratamento específico para a covid-19.

O UOL Confere já elencou cinco evidências que explicam os motivos pelos quais o tratamento precoce não funciona, apesar de ser defendido pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).

Vale ressaltar que o prefeito de Sorocaba, Rodrigo Manga, e o secretário municipal de saúde, Vinicius Rodrigues, foram visitar o presidente Jair Bolsonaro em fevereiro, em Brasília. Segundo a nota da prefeitura, Bolsonaro confirmou sua ida a Sorocaba em maio para a inauguração de uma obra com financiamento federal.

Estudo impreciso

Na divulgação, a prefeitura de Sorocaba também não deu detalhes de como o estudo foi feito, nem afirmou se o levantamento levou em conta métricas elementares de qualquer pesquisa de eficácia de medicamentos.

Segundo a nota do município, o estudo foi feito por meio de um "questionário do levantamento preliminar". "Continham informações sobre os medicamentos que usou; fatores de risco; melhora clínica com o tratamento; necessidade de internação ou não e busca por serviço de urgência", diz um trecho do texto.

Estudos clínicos de eficácia de medicamentos variam, mas não são feitos por meio de questionários. A técnica utilizada é a RCT, sigla em inglês para "estudo clínico randomizado controlado".

O processo é demorado, leva meses, e se dá pela divisão de pessoas infectadas em dois grupos separados um a um — a faixa etária e condições de saúde dos pacientes em testes devem ser separados igualmente para que o estudo seja preciso.

Um dos grupos, então, toma o medicamento a ser testado, enquanto outro recebe o placebo (remédio sem efeito nenhum no corpo). Só depois de toda a análise dos resultados desse teste os pesquisadores podem concluir se um medicamento é ou não eficaz.

Estudos semelhantes já foram feitos com a azitromicina, ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina. O resultado: os medicamentos não são eficazes contra a covid-19.

O médico infectologista do Hospital das Clínicas Evaldo Stanislau ressaltou que não é possível dizer que os pacientes sorocabanos se recuperaram por causa dos medicamentos e questiona: "Há um protocolo aprovado em um Comitê de Ética e Pesquisa Regular? Os pacientes assinam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido? Qual o desenho do Protocolo para randomização e evitar um viés de seleção? Há grupo controle?".

A prefeitura não esclareceu nenhum desses pontos na divulgação. Se enviado um posicionamento, ele será publicado.

Stanislau complementa, ressaltando os efeitos colaterais dos medicamentos. "Ademais, já ficou estabelecido que a Azitromicina não traz nenhum benefício no tratamento da covid-19, ao contrário, pode induzir resistência. A ivermectina da mesma forma não traz benefícios e tem risco de toxicidade se usada de forma excessiva. Seu uso fora de ensaios clínicos formais está contraindicado. E o pior efeito de tudo é induzir na população, leigos e com receio pela doença, a ideia de algo que os trate ou proteja".

Nessa altura do campeonato uma afirmação dessas ou é má fé ou ignorância. Prefiro pensar que seja desconhecimento mesmo
Evaldo Stanislau, médico infectologista do Hospital das Clínicas

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